Harvey Weinstein: o choro do predador
Acusado de assediar dezenas de mulheres e perto de firmar um acordo financeiro ultrafavorável, o produtor de cinema ainda reclama: 'Fui esquecido'
Dois anos depois de uma reportagem publicada pelo jornal The New York Times desencadear, em questão de dias, um vastíssimo movimento mundial contra o assédio sexual, com milhões de mulheres relatando sob a hashtag #MeToo os abusos a que foram submetidas, o maior predador ali retratado, o produtor de cinema Harvey Weinstein, saiu das sombras em que se refugiou. Em entrevista concedida na suíte de luxo de um hospital de Nova York, depois de ter passado por uma cirurgia na coluna, Weinstein, 67 anos, não pediu desculpa, não se justificou, nem sequer tocou nas denúncias contra ele, repetidas, quase iguais, por dezenas de mulheres. Em tom de mágoa, reclamou, isso sim, de ninguém mais se lembrar do bem que ele proporcionou à carreira de muitas atrizes. Isso mesmo: Weinstein quer elogios. “Fiz mais filmes dirigidos por mulheres e sobre mulheres do que qualquer outro produtor. E isso há trinta anos. Fui pioneiro”, exclamou o assediador que recebia garotas bonitas nu ou de roupão, exigia sexo oral, estuprava e, depois, forçava o silêncio delas. “Muitas vítimas são desconhecidas porque foram apagadas da indústria do cinema”, disse a VEJA Jodi Kantor, uma das jornalistas que por fim expuseram os crimes de um dos produtores mais poderosos de Hollywood.
O insólito desabafo de Weinstein — “Sinto-me esquecido” — à coluna de fofocas Page Six, do jornal New York Post, surpreendeu todo mundo. Mas o propósito principal da entrevista, conforme explicou, foi calar as suspeitas de que estava fingindo quando, ao longo das últimas semanas, chegou de andador ou apoiado em seguranças ao tribunal que julga um dos casos — daí a conversa ter ocorrido com o produtor sentado em uma poltrona no hospital, vestindo jeans e camiseta. Nem uma única palavra foi pronunciada a respeito do acordo de 25 milhões de dólares que está sendo finalizado em uma ação cível que envolve mais de trinta de suas vítimas, entre atrizes e ex-funcionárias, espalhadas pelos Estados Unidos, Canadá, Reino Unido e Irlanda.
O acordo financeiro, no valor total de 47 milhões de dólares e obtido após mais de um ano de negociações, com certeza vai adoçar o pós-operatório do assediador serial. Como sua empresa, a Weinstein Company, está em processo de falência, são as seguradoras do estúdio fechado que vão arcar com a vultosa despesa. Uma parte será distribuída entre as reclamantes já nomeadas, em indenizações de no máximo 500 000 dólares, e outras que vierem a surgir — sendo que todas se comprometem a nunca mais processar ninguém citado no caso. Outra bolada, de 12 milhões de dólares, destina-se a cobrir as despesas legais de Weinstein, de seu irmão e sócio Bob e demais membros da diretoria do estúdio. E assim se coloca uma pedra no assunto.
No tapete vermelho da estreia do filme Joias Brutas (e, antes disso, no Instagram), a atriz Emily Ratajkowski, que não foi vítima do produtor mas engajou-se no movimento #MeToo, fez questão de escrever a caneta no braço um raivoso “Fuck Harvey” em protesto pelo acordo tão favorável e pela ausência de qualquer lampejo de pedido de desculpa. A proposta ainda precisa ser homologada por dois juízes e tem de ser aceita por todas as partes — duas vítimas adiantaram que não vão concordar com os termos. As que quiseram se pronunciar disseram ver a proposta como uma compensação possível, embora longe do ideal, e que recusá-la prejudicaria quem não tem outra forma de receber alguma indenização. Boa parte das mulheres que assinam a ação enfrenta problemas como prescrição do crime ou denúncias que não se encaixam no Código Penal. Ou seja, elas não têm opção senão aceitar a oferta.
Bem diversa é a queixa-crime de duas mulheres que está sendo julgada no tribunal de Nova York aonde Weinstein chegou com dificuldades de locomoção: por ela, o ex-todo-poderoso pode ser condenado até a prisão perpétua. Enquanto o julgamento prossegue, a fiança dele foi elevada de 1 milhão para 5 milhões de dólares por suspeita de que andara manipulando indevidamente sua tornozeleira eletrônica. Ele se queixou, mas pagou. Separado da mulher e distante dos amigos influentes de antigamente, o ex-mandachuva em Hollywood vive isolado e pouco sai de casa.
A denúncia dos crimes de Harvey Weinstein resultou de uma investigação de meses conduzida por Megan Twohey e Jodi Kantor. Em conversa com a VEJA sobre o livro Ela Disse, a respeito dos bastidores da reportagem publicada no The New York Times, Jodi contou sobre os imensos obstáculos que as duas precisaram superar para expor uma rede de impunidade na qual compactuavam advogados, assessores de imprensa e tabloides. Durante décadas, Weinstein livrou-se de processos arrancando acordos de confidencialidade das vítimas, pagando a elas para que se calassem e ameaçando-as com a destruição da carreira caso fossem a público. Elas não podiam falar do assunto com ninguém — nem com o marido, nem com parentes, muito menos com outras vítimas. “Outros jornalistas haviam investigado o caso e falhado. Eu sentia a esmagadora responsabilidade de ir em frente e conseguir enfim trazer o escândalo a público”, lembra Jodi Kantor.
Ela Disse começa com uma recusa de entrevista da atriz Rose McGowan, que depois falaria em off e indicaria outras fontes. Gwyneth Paltrow, vencedora do Oscar de melhor atriz por Shakespeare Apaixonado (1998), uma produção de Weinstein, passa o livro inteiro dividida sobre se deve ou não denunciá-lo — posteriormente contaria o abuso que sofreu, da mesma forma que Angelina Jolie e Salma Hayek, as vítimas mais famosas. Nenhuma consta do acordo de 25 milhões de dólares, mas Gwyneth foi citada na entrevista-desabafo do magoado Weinstein. “Ela foi a atriz mais bem paga em um filme independente (10 milhões de dólares em Voando Alto, um fracasso)”, proclamou.
Ashley Judd foi o único nome conhecido a entrar na reportagem, no último minuto. “Parte do impacto da história veio da fama dela”, diz Jodi. Usando o argumento de que, ao relatar o que passaram, elas estariam ajudando a proteger futuras vítimas, as mulheres começaram enfim a contar sua história — e Jodi Kantor e Megan Twohey se surpreenderam com a semelhança de detalhes. “Ouvimos pessoas do mundo inteiro, que não se conheciam, e os cenários eram quase idênticos”, afirma Jodi. Uma ajuda decisiva partiu de Irwin Reiter, contador de Weinstein, que passou às jornalistas um documento em que uma antiga funcionária acusava o produtor de assédio. Era a prova escrita que faltava.
Um dia após a publicação da reportagem, um terço do conselho (masculino) da Weinstein Company renunciou. Weinstein foi demitido. Em um ano, a companhia declarou falência. Outros figurões da indústria foram expostos, mas, segundo as jornalistas, o movimento #MeToo perdeu força. No final de Ela Disse, Jodi e Megan reúnem doze entrevistadas em uma espécie de sessão de terapia, e nenhuma sabe dizer se as mudanças obtidas foram suficientes. “Até hoje não sabemos qual é o caminho certo para isso não acontecer mais”, afirma Jodi. “Pelo menos, pudemos abrir os olhos da sociedade para um problema que quase ninguém enxergava.” Não há nenhuma dúvida de que esse objetivo foi alcançado.
Publicado em VEJA de 25 de dezembro de 2019, edição nº 2666