Em um dos melhores momentos de The King (Alemanha e Estados Unidos, 2017; disponível no iTunes, NOW e Google Play), a cantora country Emmylou Harris equipara o protagonista do documentário — ele mesmo, Elvis Presley — a um herói da mitologia. A comparação não é lá tão descabida. Assim como os heróis gregos, o jovem Elvis recebeu uma dádiva dos deuses: o dom de cantar, compor e rebolar como ninguém. Mas, tal e qual Ícaro, caiu em desgraça ao abusar do favor recebido dos deuses: a certa altura da carreira, o astro tornou-se uma criatura gananciosa, disforme e capaz de se associar a pessoas lamentáveis, como prova o flagrante abaixo de um encontro com o então presidente Richard Nixon, para quem escrevera uma carta em que denunciava — logo ele, o chamado Rei do Rock! — a perversão e o “antiamericanismo” dos jovens.
O cineasta Eugene Jarecki empreende esse exame revelador do cantor valendo-se de um recurso feliz: a narração em formato de road movie. A bordo de um Cadillac 1963 que pertenceu ao astro do rock, Jarecki passeia por cidades americanas — em especial, no sul de origem do cantor — em busca de amigos de infância e adolescência de Elvis. No caminho, dá carona a artistas anônimos e celebridades, como os atores Alec Baldwin e Ethan Hawke. Todos contribuem com surpreendentes lampejos sobre sua vida e sua música.
A trajetória de Elvis Presley (1935-1977) suscita dúvidas e controvérsias. Foi um fenômeno por mérito próprio ou só um branco que se apropriou dos ritmos negros? Como o sex symbol dos anos 50 se tornou o cantor decadente do fim da carreira? Jarecki não traz teses prontas: prefere que o espectador tire conclusões com base nos depoimentos. Chuck D, líder do grupo de rap Public Enemy, vem criticar Presley por sua omissão na luta dos direitos civis americanos. Mas logo se ouve David Simon — criador dos seriados The Wire e Treme — em socorro do personagem nesse aspecto. Com uma no cravo e outra na ferradura, The King ilumina o homem por trás do roqueiro.
Publicado em VEJA de 3 de abril de 2019, edição nº 2628
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