Israel vira moda na TV mundial com uma vigorosa leva de séries
Produções do país conquistaram desde a Globo até a Netflix ao lançar olhar afiado sobre as idiossincrasias da cultura local e os conflitos do Oriente Médio
Em março deste ano, poucos dias após o fechamento das divisas e o início da quarentena, uma outra fronteira foi quebrada pela Netflix. Em quatro episódios, a irretocável minissérie Nada Ortodoxa abriu uma curiosa janela para uma cultura exclusivíssima, a do judaísmo ultraortodoxo, ao adentrar nos bastidores da comunidade hassídica Satmar de Williamsburg, em Nova York. Na trama, Esther (Shira Haas), uma jovem de 19 anos, infeliz no casamento arranjado, foge para Berlim e nasce para um novo e complexo mundo de liberdade e desafios. O recorte deveras específico dessa vertente da fé judaica, criada por sobreviventes húngaros do Holocausto, não impediu o drama de produção alemã e elenco israelense de ganhar status de fenômeno: Nada Ortodoxa cavou trincheira durante semanas entre os mais vistos da plataforma e arrebanhou críticas elogiosas e indicações ao Emmy — levando uma estatueta de melhor direção no badalado prêmio americano.
Inspirada em uma história real, Nada Ortodoxa se vale de um caminho aberto por um movimento de pouco mais de uma década, em que séries de TV produzidas em Israel atraíram grandes estúdios e canais, da Fox a HBO, passando recentemente pela Netflix e até as nacionais GNT e Globoplay. Num primeiro momento, as emissoras trataram de produzir remakes das histórias vindas de lá. Caso da aclamada Homeland e da novata Euphoria, ambas americanas, além da brasileira Sessão de Terapia, já em sua quarta temporada por aqui. O advento das plataformas de streaming deu o impulso necessário para que as produções feitas em Israel encontrassem uma via direta com o público. Na Netflix, a imperdível Fauda causou comoção (positiva) até entre palestinos, ao acompanhar a caçada israelense a um astuto terrorista do Hamas. Já o adorável drama Shtisel, com ultraortodoxos da corrente haredi, observa os dilemas de um rapaz dividido entre o rigor das tradições e hábitos vistos com maus olhos pela religião (veja o quadro).
Mais do que oferecer um vislumbre pela fechadura para uma cultura distante da ocidental, essas séries são entretenimento da melhor cepa, com roteiros viciantes, atores sagazes e produções de orçamento modesto, mas de qualidade. Não à toa, vem conquistando espectadores que não entendem uma palavra sequer de hebraico ou até da rara língua iídiche (usada em Nada Ortodoxa), mas se identificam com seus dilemas humanos universais. “Esse sucesso vem da construção de narrativas honestas e autênticas, não tentamos emular Hollywood”, disse a VEJA o jornalista Avi Issacharoff, cocriador e roteirista de Fauda.
Criado em 1948, Israel é um país jovem e pequeno, com 8,8 milhões de habitantes, e apenas cinco canais de TV — e mais de uma centena de pequenas produtoras independentes. Surpreende, então, que tenha se tornado uma potência televisiva global. O que não é novidade é o vigoroso histórico artístico dos judeus. É longa a sua tradição literária pelo mundo — eles são, aliás, vencedores assíduos do Nobel de Literatura. É ainda terra natal dos populares escritores Amós Oz (1939-2018) e Yuval Harari. Para uma nação com um passado de perseguições e raízes territoriais instáveis, o registro de sua realidade, conflitos e traços culturais, seja nos livros, seja na TV, funciona como parte de uma formação identitária. É comum, então, que essas séries explorem desde a vida cosmopolita em Tel Aviv até as ações da agência de inteligência israelense Mossad (de reputação comparável à americana CIA e à britânica MI6), assim como os conflitos entre os países vizinhos.
Recentemente, a Apple TV+ lançou Teerã, uma das séries de maior repercussão da plataforma, atrás apenas de The Morning Show, com Jennifer Aniston e outras estrelas hollywoodianas. Nela, uma agente do Mossad se infiltra no Irã para desativar as defesas aéreas do país e permitir que a agência destrua um reator nuclear. Mesmo sendo produzida pelo inimigo, Teerã atraiu uma grande audiência de iranianos, que burlaram a falta do Apple TV+ no país com a pirataria. O apelo se dá pelo trato inesperado de Israel, que, em vez de optar por tramas maniqueístas, em que vilão e mocinho são bem delineados, prefere caminhar sobre tons de cinza. “Buscamos olhar para os dois lados e tirar o espectador da zona de conforto”, diz Issacharoff.
O filão de espionagem, aliás, se revelou frutífero. Hatufim (2009), título original da série que se tornou Homeland, mostra o retorno de ex-prisioneiros de guerra que escondem um segredo. No ano passado, a Netflix lançou O Espião, em que Sacha Baron Cohen interpreta um agente real do Mossad, que se infiltrou no governo da Síria, nos anos 60. Apesar de jovem como país, graças à trajetória de seu povo, Israel tem uma enorme bagagem de histórias para contar — e que bom que podemos vê-las.
Histórias que cruzam fronteiras
Do drama de um psicólogo em crise à adrenalina de uma trama de espionagem, quatro exemplos da fórmula de sucesso da TV feita em Israel
TIPO EXPORTAÇÃO
Ao tratar com criatividade temas de apelo universal, a TV israelense emplacou remakes em vários países, caso de Sessão de Terapia, sobre o dia a dia de um psicólogo, produzido no Brasil pelo GNT. Euphoria, da HBO, a respeito de jovens enfrentando vícios, é outro exemplo vindo de lá.
NA INTIMIDADE
Assim como Nada Ortodoxa, a série Shtisel, na Netflix, é parte de um recorte cultural que descortina os bastidores da vida ultraortodoxa judaica. Na trama, um jovem sensível que estuda para ser rabino lida com o luto da perda da mãe e busca um casamento que não seja arranjado.
ENTRE CONFLITOS
A complexidade das relações no Oriente Médio tem sido explorada com esmero pela TV israelense, que conserva nos roteiros um tom neutro. Tanto que o ótimo thriller Fauda, na Netflix, se tornou sucesso até entre palestinos ao narrar a caçada a um terrorista do Hamas.
INFILTRADOS
Envoltas pela aura mítica do serviço secreto israelense Mossad, séries sobre espionagem são um filão fértil no país. Em Teerã, da Apple TV+, uma agente se infiltra no Irã para desativar um reator nuclear. Na Netflix, O Espião, com o ator judeu Sacha Baron Cohen, o “Borat”, reforça o gênero.
Publicado em VEJA de 25 de novembro de 2020, edição nº 2714