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Kleber Mendonça Filho: “Não fiz um panfleto”

O diretor de 'Bacurau' diz que nunca acordou e pensou “vou fazer um filme político”, embora admita que seu trabalho é visto como metáfora do Brasil de hoje

Por Fernando Molica e Bruna Motta
Atualizado em 4 jun 2024, 15h36 - Publicado em 27 set 2019, 06h55

O cineasta Kleber Mendonça Filho, de 50 anos, começou tarde, mas começou bem. Lançou o primeiro longa-metragem, o elogiado O Som ao Redor, quando tinha 43 anos. O segundo, Aquarius, colecionou prêmios e foi apresentado no Festival de Cannes em 2016 — quando Mendonça e os atores causaram rebuliço ao posar no tapete vermelho com placas de protesto contra o impeachment de Dilma Rousseff. Agora ele colhe os louros de Bacurau, ficção com ares de Quentin Tarantino e Glauber Rocha que ganhou o Prêmio do Júri em Cannes neste ano e já levou mais de 500 000 espectadores aos cinemas brasileiros. Nascido e criado no Recife, onde mora até hoje com a mulher, a produtora francesa Emilie Lesclaux, e os dois filhos gêmeos, Mendonça foi crítico de cinema durante treze anos antes de se aventurar nos longas-metragens e se tornar um dos mais relevantes diretores da atualidade. Nesta entrevista a VEJA, por telefone, de Paris, onde acaba de lançar seu filme — “Preciso parar de viajar. Tenho mais que fazer”, brinca —, ele antecipou a possibilidade de filmar uma continuação de Bacurau.

Nos fim das sessões de Bacurau é comum ouvir gritos de “Lula livre” e xingamentos a Jair Bolsonaro. O senhor previa esse tipo de reação? Nunca acordei e pensei: “Hoje vou fazer um filme político”. Agora, minha ambição é produzir uma obra honesta, que retrate a vida ao meu redor, as pessoas que eu conheço, o funcionamento das coisas no país onde moro. Bacurau se ancora em uma ideia muito palpável de Brasil, e entendo que isso abra espaço para que seja visto como uma película política. Sinceramente, acho que deve dar muito trabalho criar um filme no qual você se desprenda da sociedade em que está. Essa forma esterilizada de fazer cinema existe, mas não é a minha. O engraçado é que eu cresci achando que filme político era gravado em prédios de governo. Fui compreendendo que pode também se passar dentro de uma cozinha, por que não? É nesse rol que me situo.

O senhor reconhece em seu filme um tom panfletário, como parte dos críticos ressaltou? Certamente não vejo meu filme como um panfleto. Queria fazer uma história de ação, aventura, mas que também tratasse de questões que são cíclicas, crônicas no Brasil. Ponho na tela, por exemplo, a separação invisível e histórica entre Sul e Sudeste, de um lado, e o Nordeste, de outro. A desigualdade está retratada lá, assim como o problema do abastecimento de água, o político corrupto, os supremacistas brancos, o caminhão que despeja livros no meio da rua, o descaso com a educação. E hoje é assim: quem defende o básico, educação gratuita e de qualidade para todos, como eu, acaba sendo chamado de “esquerdopata”.

Alguns críticos também afirmaram que seu filme é simplista, exagerado na divisão entre o bem e o mal. O senhor concorda em algum grau com esses comentários? Bacurau é um western. Há vilões, há heróis, há enfrentamentos que podem ser violentos, uma cidade isolada, uma região árida. O filme é assim. Mas — e é isso que faz com que seja bom — é revestido das várias camadas que compõem a narrativa brasileira. De Asterix a Mad Max 2, de O Cavaleiro Solitário, de Clint Eastwood, a Kill Bill e Star Wars, todos usam a mesma estrutura clássica de vilões e heróis, dos que agem versus os que resistem. Acho que essa reação a Bacurau fala mais do observador que do filme.

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“Entre os críticos, há os que admiro e os que desprezo, mas nunca rebati ninguém. Uma curiosidade: só lá pela terceira semana em cartaz pensadores da direita descobriram Bacurau”

 

As críticas o irritam? Cada um olha o filme como pode, e eu, que também já fui crítico de cinema, aprendi que, no fundo, eles escrevem sobre si mesmos. Como em qualquer área de atuação, há críticos de todos os graus de competência, os que eu admiro e os que desprezo, mas nunca rebati ninguém. Uma curiosidade: observei que só lá pela terceira semana em cartaz pensadores e escritores de direita descobriram Bacurau. Nessas críticas vejo certa falta de familiaridade com a ideia de um filme de gênero. De novo, um western.

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Um western que em dado momento evoca nomes de figuras representativas da esquerda, como a ex-primeira-dama Marisa Letícia e a vereadora Marielle Franco, assassinada no Rio de Janeiro. Isso não é política pura? Filmes podem ser entretenimento, expressões artísticas, mas são também, inevitavelmente, documentos históricos, das comédias despretensiosas aos documentários mais formais. As citações a esses e outros nomes são importantes, pois, no futuro, quando Bacurau for revisto, talvez eles sejam lembrados e discutidos.

O senhor parece ter se inspirado em vasta medida no Brasil atual. É isso mesmo? O roteiro começou a ser escrito em 2009, sofreu ajustes, claro, mas é muito curioso como uma década depois nos aproximamos tanto da realidade. Ingredientes do texto original estão mais atuais do que nunca. Olhe o Rio de Janeiro, onde a violência contra o povo é consentida, há snipers e tudo, crianças sendo baleadas, um paralelo imprevisível com o western de Bacurau.

O senhor não estaria incitando a violência, como afirmou uma ala dos críticos, ao propor em sua história que ela seja combatida com mais violência? De jeito nenhum. Bacurau tem o comportamento de vários lugares reais no Brasil. Falo isso com segurança, depois de ter rodado 11 000 quilômetros atrás de uma locação ao lado do Juliano (Dornelles, codiretor). A viagem só veio confirmar muito do que eu tinha escrito. Esse tipo de comunidade que se ajuda, que aprende a viver relativamente bem mesmo à margem do poder público, existe não só no sertão, mas também em locais urbanos mais pobres. E a violência está lá como uma forma de reação. Examinamos ainda referências históricas, como o Gueto de Varsóvia, onde nazistas confinaram judeus e instalaram um sistema de genocídio contra o qual, a certa altura, houve uma tentativa de insurreição. Olhamos para a Guerra do Vietnã. São situações-limite em que não é absurdo pensar que um grupo de pessoas vá reagir de modo violento a um ato de violência devastador.

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Sonia Braga (no centro) em cena de
Sonia Braga (no centro) em cena de “Bacurau” (Victor Jucá/Divulgação)

O senhor teme o cerceamento à cultura, medo esse que vários de seus colegas já manifestaram? Um líder de governo não pode discutir, insinuar nem defender a censura. É inconstitucional. Na Alemanha dos anos 30, na Revolução Cultural na China, nos golpes de Estado no Chile e no próprio Brasil houve várias tentativas de levar um mundo fictício à realidade cotidiana na base da intimidação e do desrespeito à liberdade de expressão. Neste momento, cabe aos artistas seguir exercendo seu trabalho de modo livre.

Em sua opinião, há indicativos de que o obscurantismo possa avançar na área cultural? Aparentemente, há uma tentativa de direcionamento por parte do governo em relação à produção cultural, e isso precisa ser enfrentado. Em minha vida, quase só testemunhei movimentos de construção. Muitas vezes atrapalhados, é verdade, mas saímos das trevas do governo militar, adentramos a democracia, vi uma reconstrução do cinema brasileiro, a chegada de novas tecnologias. É a primeira vez que parece estarmos andando no sentido da destruição.

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“Um líder de governo não pode discutir, insinuar nem defender a censura. É inconstitucional. Neste momento, cabe aos artistas seguir exercendo seu trabalho de modo livre”

O diretor da Funarte Roberto Alvim chamou a atriz Fernanda Montenegro de “sórdida” pelo fato de ela ter aparecido na capa de uma revista amarrada e com livros jogados a seus pés, o que seria uma alegoria a tempos de retrocesso na cultura. Como o senhor vê esse tipo de comentário? A Fernanda é tão importante para a cultura brasileira quanto Elis Regina, Villa-Lobos, Glauber Rocha, Clarice Lispector. Como alguém pode dizer uma coisa dessas? Ela tem décadas de serviços prestados à cultura brasileira, assim como o Chico Buarque. Vi que houve recentemente um questionamento em torno da concessão do importante Prêmio Camões ao Chico. Nada disso faz o menor sentido.

O senhor é alvo de um processo instaurado pela Ancine que lhe cobra a devolução de 2 milhões de reais, referentes a recursos captados — segundo ela, 15% além da conta — para seu longa O Som ao Redor. Isso faz sentido? Nenhum. Trabalho com cinema há mais de vinte anos e minha trajetória é pública e notória. Tenho filmes respeitados dentro e fora do país, exemplares na forma como foram feitos.

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Essa cobrança teria alguma ligação com a manifestação aberta que fez contra o impeachment de Dilma Rousseff no Festival de Cannes, em 2016, justamente antes de a Ancine o processar? É curioso observar que os problemas apareceram quando começou a mudar o sinal democrático no Brasil. O processo da Ancine é algo com que estou lidando, seguindo os trâmites habituais e orientado por advogados. Tenho total certeza de que o assunto será solucionado.

O senhor manifesta ressalvas à direita. E à esquerda? A ideia da perfeição não se aplica à política — nem à esquerda nem à direita. Dito isso, neste Brasil imperfeito, que ainda paga por seus erros históricos no dia a dia, estávamos, a meu ver, em uma posição melhor. Tínhamos mais liberdade de expressão, mais prestígio no mundo e mais respeito à cultura durante os anos de governo que muitos chamam de “esquerda”.

Há risco de o país chegar ao limite, como acontece em Bacurau? Espero que não. O Brasil é contraditório, lindo de um ângulo e muito feio de outro. É um país que não tem observado as próprias regras, não tem respeitado sua Constituição. Vamos superar isso, mas vai levar tempo, dois, três, dez anos, não sei. Não custa lembrar que destruir é muito mais rápido que construir.

O que planeja para a vida pós-Bacurau? Estou trabalhando em um filme que é um ensaio, uma arqueologia sentimental das salas de cinema do centro do Recife. Tenho ideias de projetos dentro e fora do Brasil. Mas ainda estou sugado por Bacurau.

Há chance de um Bacurau parte 2? Com o envolvimento que o filme despertou no público, entendi pela primeira vez por que diretores fazem sequências no cinema. Vou adiantar aqui: não descarto de forma alguma uma continuação de Bacurau.

Publicado em VEJA de 2 de outubro de 2019, edição nº 2654

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