Talentos assombrosos
Três belos clássicos de Cortázar, Silvina Ocampo e Borges comprovam: na literatura fantástica, eles sempre estiveram à frente dos brasileiros

A paisagem do pampa argentino é vasta e horizontal. Poucos acidentes geográficos, quase nenhum relevo digno de nota, nada de íngreme a desafiar o olhar. Foi observando um nascer do sol nessa paisagem em 1933 que o escritor francês Drieu La Rochelle, acompanhado de um embriagado Jorge Luis Borges, teria formulado a expressão “vertigem do horizontal” para se referir ao sentimento perturbador que aquela grandiosa homogeneidade natural provoca. Um cenário em tudo oposto à exuberância da paisagem brasileira, com sua faixa litorânea atlântica pujante, suas florestas já banalmente sabidas verdejantes, nossas cidades construídas entre o mar e os montes. Curiosamente, no entanto, da encantatória natureza brasileira, extrai-se mais regularmente uma literatura de caráter documental e traços realistas. Da regularidade monótona do pampa e da planura de Buenos Aires, emergiu uma literatura de inventividade formal e imaginativa potente, cujo gosto pelo “fantástico” é sem igual na América Latina. Que o digam Julio Cortázar e Silvina Ocampo, duas estrelas de brilho singular naquele horizonte portenho e que chegam às livrarias brasileiras em novas edições da Companhia das Letras — que relança também um clássico que sintetiza a fixação argentina pelo tema: a Antologia da Literatura Fantástica, organizada por Borges, Silvina e Adolfo Bioy Casares (com quem ela foi casada).

Cortázar não foi mero cultor do conto fantástico: consagrou-se no gênero, especialmente após a publicação de Bestiário (1951), Final de Jogo (1956) e As Armas Secretas (1959), nos quais o leitor encontrará pérolas como Casa Tomada e As Babas do Diabo (que inspirou o filme Blow-Up, de Michelangelo Antonioni). Foi nessa modalidade que o autor criou uma assinatura muito própria, fazendo surgir o elemento fantástico nas situações mais prosaicas e realistas — um exemplo é a estranha condição da casa que vai tendo seus cômodos invadidos por não se sabe quem, diante da curiosa e perturbadora resignação da família que protagoniza o conto Casa Tomada. Mas esse escritor argentino nascido na Bélgica e radicado desde os anos 50 em Paris queria ousar ainda mais. Em 1959, escreveu ao amigo e tradutor francês Jean Barnabé: “Se hoje eu continuasse escrevendo contos fantásticos, me sentiria um perfeito vigarista; modéstia à parte, eles já se tornaram fáceis demais para mim”.
Em 1963, com a publicação de O Jogo da Amarelinha, que agora chega ao leitor brasileiro na tradução de Eric Nepomuceno e em edição exuberante, acompanhada de correspondência do autor e ensaios críticos, Cortázar desvencilhou-se das estruturas e dos sistemas da narrativa curta fantástica que tão brilhantemente havia desenvolvido e ingressou em outra dimensão criadora: um romance de radical invenção formal, de experimentalismo e criatividade únicos, que incendiou a imaginação e a sensibilidade daquela geração — e das seguintes.’
Há “mágica” em O Jogo da Amarelinha, mas não mais aquela que a literatura fantástica costuma obter. Das situações inusitadas, irreais, por vezes delirantes, o fantástico é transportado, agora, para a estrutura do romance e mesmo para a linguagem literária, matéria-prima e ferramenta básica de trabalho do escritor. Chamado de “antirromance” pelo próprio autor, O Jogo da Amarelinha desenvolve não um, mas dois esquemas narrativos entrelaçados. Um é linear: intitulado “Do lado de lá”, conta em 56 capítulos a trajetória de Horacio Oliveira, intelectual argentino vivendo com certa precariedade em Paris, dedicado às suas obsessões artísticas e filosóficas, ao amor poético e perturbador pela uruguaia La Maga e a uma busca existencial por algo indefinido. A precariedade e a incerteza existencial persistem na segunda e mais fragmentária parte do livro, “Do lado de cá”, com Horacio instalado de volta em sua Buenos Aires de origem e acompanhando com incômoda proximidade a vida de seu amigo, Manolo Traveler, e da esposa dele, Talita. Os 155 capítulos de O Jogo da Amarelinha podem ser lidos em ordem alternada, saltando da narrativa dos acontecimentos da vida de Oliveira para digressões sobre literatura e arte, além de breves episódios autônomos que estão no cerne da algaravia literária de Cortázar.


Em 1959, enquanto Cortázar começava a acalentar seu afastamento do registro da literatura fantástica que o consagrara, a escritora Silvina Ocampo publicava A Fúria, livro de contos de excelência e rigor impressionantes que é publicado agora no Brasil pela primeira vez. Conhecedora das minúcias das diversas vertentes da literatura fantástica, Silvina — muito admirada pelo próprio Cortázar, aliás — escreve com economia de recursos, e uma potência de resultados própria aos grandes mestres do gênero: os relatos são curtos e as situações têm aquela dimensão de sonho que torna tudo o que há de estranho aceitável ao leitor. Como Cortázar, Silvina expõe a estranheza por trás da frugalidade do mundo real. Contos como A Continuação ou A Casa de Açúcar mostram o domínio formal e temático da autora, além de uma inclinação para sondar livremente os abismos morais e psicológicos dos personagens. Essa liberdade não vem sem custos: a perscrutação do mal, o enfrentamento de perversões graves e de crueldades banais, tudo contribui para a atmosfera carregada de mal-estar da ficção de Silvina.
Sua intimidade com o gênero pode ser atestada, ainda, pela colaboração fundamental para a Antologia da Literatura Fantástica, ao lado de Borges (de quem era muito amiga) e do marido, Adolfo Bioy Casares. Na obra, o leitor poderá encontrar um apanhado de clássicos do gênero, que vão de histórias das Mil e Uma Noites aos contos de Kafka — passando, claro, por Cortázar. Não só pelo que escreveram, mas também por sua divina obsessão de mapear o universo do insólito, é inevitável constatar: ao menos nessa seara da literatura, os hermanos conseguiram feitos mais fantásticos que certos vizinhos dos trópicos.
Publicado em VEJA de 2 de outubro de 2019, edição nº 2654