Machismo, coronel, estupro: novela mostra que sertão mudou. Mas nem tanto
Cidade com carros e motos levantando poeira no lugar de animais, e cantora transgênero no comando da noite, garantem atmosfera atual à supersérie da Globo
Jovens que fazem trilhas de bicicleta e roupa esportiva, motos e carros que tomam o lugar de jegues, cavalos e jumentos pelas ruas da cidade, uma mãe que pratica cooper à noite, lanterna sobre a cabeça para dissipar a escuridão, entre a vegetação seca e a poeira do semiárido. Sertão, a cidade fictícia que representa a região nordestina em Onde Nascem Os Fortes, consegue, ao menos pelo que se viu no primeiro capítulo da novela das 11 – agora chamada pela Globo de supersérie – fugir aos estereótipos sertanejos mais batidos.
E não se trata de uma celebração a uma modernização do sertão. Melhor do que isso: o cenário atualizado mostrou que, apesar das mudanças, a região preserva algumas de suas antigas características, para o bem e para o mal. Como a figura do agregado, aqui na pele de Gil (Clarissa Pinheiro), uma motorista e faz-tudo da família de Pedro Gouveia (Alexandre Nero) empresário que, pelo poder econômico, é também a maior força armada e política do município. Uma espécie de coronel reloaded. Gil tem liberdade até para perguntar se o patrão tem dado no couro com a mulher, Rosinete (Débora Bloch), a quem na realidade anda traindo com uma funcionária, a paulista emigrada Joana (Maeve Jinkings).
O agregado é uma figura ambígua: muitas vezes, vive à mercê da casa que o abriga, em um regime de quase servidão, mas é considerado “parte da família”, o que, em tese, o enobrece, além de criar laços afetivos por vezes firmes.
Rosinete é outra personagem ambígua. Ela que, ao modo de uma moradora das grandes cidades, sai de casa à noite para correr, roupa colada ao corpo e lanterna atada à testa para iluminar o sertão e, durante o dia, é uma dona de casa esquecida pelo marido e fadada a cuidar da casa e da filha adolescente, que sofre de uma doença que médico nenhum ainda conseguiu desvendar.
Outra ambiguidade que subsiste na região está representada pela Shakira do Sertão, cantora transgênero encarnada pelo ótimo Jesuíta Barbosa no palco do bordel da cidade. A questão da sexualidade, como mostra a personagem, segue demarcada e controversa no interior nordestino. De dia, Jesuíta é Romarinho, um sujeito que esconde sua dupla identidade. Um laivo de machismo que fere, e pode matar.
Menos ambíguo, e mais trágico, é o machismo que, ao que tudo indica, vitimou já no primeiro episódio o personagem de Marcos Pigossi, o beberrão mulherengo e metido a valente Nonato, irmão gêmeo de Maria, papel de Alice Wegmann. Nonato fez questão de mexer com Joana, embora ela dissesse que não queria nada com ele e Pedro Gouvêa, que se apresentou ao garoto como dono da paulista, o tenha ameaçado. O confronto entre eles terminou longe do bar, em um descampado, com sangue pelo corpo e um revólver na boca do garoto.
Machismo que, logo na abertura da novela, iniciada com um passeio de bicicleta de Maria, quase resultou no estupro da personagem por dois homens que passaram de moto por ela. Maria foi salva por Hermano Gouvêa (Gabriel Leone), com quem logo engatou um romance, agora com tons de Romeu e Julieta pelo confronto entre o pai do paleontólogo, Pedro, e seu irmão, Nonato.