Descobri a colorização de fotos em 2015. Sempre me fascinou a ideia de trazer para uma realidade mais próxima os momentos e as pessoas que moldaram o mundo. Meu amor pela história me acompanha desde criança. Na escola, era como se eu fosse transportada a outro lugar, tamanho o meu envolvimento. Entendi desde o início que juntar minhas maiores paixões — arte e história — e transformá-las naquilo que viria a ser a minha profissão era um privilégio. Sempre atribuí a essa consciência a “obsessão” que se desenvolveu em mim. A ansiedade para compreender as técnicas, as incontáveis horas que passava estudando, o perfeccionismo que sempre persegui, a inquietação para produzir trabalhos cada vez melhores, o jeito como o processo me envolvia tão intensamente que eu me esquecia até de fazer tarefas básicas, como dormir.
Todo o esforço valeu a pena e aos poucos veio o reconhecimento; primeiro internacional, depois no Brasil. Num primeiro momento, senti uma euforia muito grande. Eu, que era uma menina quieta, que observava muito e falava pouco, tive as minhas emoções mais profundas escancaradas para o mundo através da minha arte, aos 21 anos. Entrevistas para veículos do mundo todo, projetos internacionais, viagens constantes, um primeiro livro em listas de best-sellers (The Colour of Time: A New History of the World) e um público cada vez mais interessado no meu trabalho. Sempre serei muito grata por tudo, mas não há escola que prepare a pessoa para mudança tão súbita e radical. Aos poucos, as crises de ansiedade voltaram. A depressão também. Tamanha era a cobrança que eu impunha sobre mim que ela começou a me paralisar.
Passei por diversos profissionais desde a infância — psicólogos e psiquiatras —, todos com diagnósticos diversos: ansiedade generalizada, síndrome do pânico, depressão. Minhas inseguranças descabidas e pensamentos obsessivos eram “coisa da infância, daqui a pouco passa”. Meu interesse por assuntos não compatíveis com a minha idade era só “amadurecimento precoce”. Comecei a falar aos 8 meses, ler antes dos 4 anos, escrevi um livro aos 5. Cresci me sentindo diferente. Sabia que alguma coisa estava “errada”. Precisei tomar diversos remédios que pioravam minhas questões emocionais, crescer deslocada e esperar mais de vinte anos para que o diagnóstico correto chegasse: autismo. Foi como se uma venda tivesse sido arrancada dos meus olhos e tudo fez sentido instantaneamente. Era tão óbvio, e ainda assim ninguém foi capaz de juntar os pontos e perceber. Talvez por despreparo, talvez porque a imagem que as pessoas têm de autistas é muito equivocada, generalista e preconceituosa. “É impossível você estar no espectro. Autistas não fazem amigos, não trabalham, não estudam, não se casam”, dizem. Desde então, venho passando por uma transformação intensa e positiva. Ressignifiquei muitas coisas, venho entendendo outras, me conhecendo melhor. Sou capaz de me perdoar por situações do passado e traços da minha personalidade que antes eu não entendia. Compreendi que nada estava “errado” comigo. Tem sido um processo transformador.
Devo a descoberta à doutora Raquel Del Monde e à amiga Andréa Werner, jornalista, ativista e mãe do Theo, que, para compreender o filho, se jogou nos estudos e virou uma das vozes mais fortes na luta pelo direito dos autistas e pessoas com deficiência. Foi ela quem percebeu os sinais e me incentivou a investigar. Tenho certeza de que, se não a conhecesse, morreria sem o diagnóstico. Infelizmente, esse é o caso de milhões de mulheres. Esse foi um dos motivos para que eu decidisse dividir a minha experiência com o meu público e escrever este texto. É preciso desfazer preconceitos e generalizações e entender que cada autista é único. Uns têm mais dificuldades, outros menos. Uns têm “talentos específicos”, outros não. Cada um tem a sua história. Respeitar a individualidade é essencial; um passo importante na direção de uma sociedade menos ignorante e mais inclusiva.
Depoimento dado a André Siqueira
Publicado em VEJA de 12 de agosto de 2020, edição nº 2699