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Morte de Paulo Gustavo, criador da mais brasileira das mães, comove o país

Um dos principais nomes do humor no Brasil, o ator de 42 anos deu um rosto ao quase meio milhão de vítimas da pandemia

Por Jana Sampaio, Raquel Carneiro Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 13h52 - Publicado em 7 Maio 2021, 06h00
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REI E RAINHA - Paulo Gustavo: no seu humor sempre calcado no popularesco, o que era preconceituoso virou inclusivo – (Bob Wolfenson/GQ Brasil/.)

O relógio marcava 21h12 da terça-feira 4 quando foi declarada a morte do ator Paulo Gustavo, vítima de Covid-19, aos 42 anos. Em um dos lados do leito da unidade de terapia intensiva do Hospital CopaStar, na Zona Sul do Rio de Janeiro, estava o marido dele, Thales Bretas. Do outro, a melhor amiga, Susana Garcia. Ambos médicos. De mãos dadas com o humorista, eles viram os enfermeiros desligar os aparelhos que o mantiveram vivo por sofridos 44 dias. No quarto estavam também a mãe, Déa, o pai, Júlio, a irmã, Juliana, e a madrasta, Penha, que cantaram emocionados uma música no momento da despedida. Depois foi a vez dos fãs receberem a trágica notícia — das janelas e das calçadas em frente ao hospital, eles o homenagearam com um prolongado aplauso. Em minutos, manifestações de pesar foram ouvidas em toda parte. Anestesiado por quase 420 000 mortes pela pandemia, o país via a doença, implacável, ganhar o rosto e o nome de Paulo Gustavo, inventor e encarnação de Dona Hermínia, a personagem levada do teatro para o cinema e que virou a mãe debochada de cada um. E, então, os brasileiros ficaram órfãos.

A Covid-19 surpreendeu Paulo Gustavo. O ator, extremamente cauteloso desde o início, mantinha-se isolado em um sítio em Itaipava, na companhia apenas de Thales e dos filhos, Gael e Romeu, de 1 ano, gerados em barriga de aluguel. Os raros visitantes eram obrigados a se testar e ele próprio se submetia ao PCR semanalmente. Um dos resultados foi positivo. Aos primeiros sinais de febre, tosse e dor de cabeça, Paulo voltou para o Rio, onde fez três tomografias. Como apenas 10% dos pulmões estavam comprometidos, foi liberado para se tratar em casa. O quadro, porém, piorou rapidamente. Em dois dias, com dificuldade para respirar, o ator retornou ao hospital. Internado, recebeu um cateter de alto fluxo de oxigênio, mas ainda assim pôde continuar a manter contato com o marido e a melhor amiga — sempre de bom humor e fazendo planos para o futuro. “Vou transformar minha dor em arte”, disse a Susana, que dirigiu Minha Mãe é uma Peça 3. O enredo do novo projeto estava praticamente pronto e a dupla já havia até feito a escalação do elenco. “Os olhos do Paulo brilhavam quando a gente discutia essa ideia”, conta ela.

FAMÍLIA - Com o marido, Thales, e os filhinhos, Gael e Romeu: fim precoce na doença que agora ataca os jovens -
FAMÍLIA - Com o marido, Thales, e os filhinhos, Gael e Romeu: fim precoce na doença que agora ataca os jovens – (Reprodução/Instagram)

A leveza deu lugar à preocupação ao saber que precisaria ser intubado. “Conversamos muito. Ele ficou receoso, mas disse que logo estaria de volta”, relata a amiga. Os níveis de saturação não melhoraram e a equipe médica apelou para o ECMO, uma espécie de pulmão artificial utilizado em casos extremos. Paulo permaneceria conectado à máquina até o fim da vida. Déa, a grande fonte de inspiração, que durante a internação se reunia virtualmente com amigos e fãs em grupos de oração, despediu-se do filho com um agradecimento: “Obrigada por ter me escolhido para ser sua mãe”, disse, emocionada. O perfil da celebrada Dona Hermínia foi moldado na professora aposentada Déa Amaral, de 73 anos. Paulo Gustavo achava graça no jeito da mãe, extrovertido, mandão, briguento e exagerado, e muito amoroso. “Quando a peça estreou, a dona Déa adorou, ficou emocionadíssima, e em tom de brincadeira pediu 10% de participação nos lucros. Entre os dois, uma briga e um abraço eram separados por segundos”, diz o humorista Fábio Porchat, amigo havia quase vinte anos de Paulo Gustavo.

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SUCESSO - Campeões de audiência: na série Vai que Cola, a mais vista da TV fechada, e na peça 220 Volts, em que faz paródia da cantora Beyoncé (à dir.) -
SUCESSO - Campeões de audiência: na série Vai que Cola, a mais vista da TV fechada, e na peça 220 Volts, em que faz paródia da cantora Beyoncé (à dir.) – (Multishow/Paprika Fotografia/.)

Na onda gigante em que surfou a comédia brasileira na última década, Paulo Gustavo foi rei — ou, como ele preferia, rainha. Os números em torno do humorista sempre circulavam na casa do milhão. Minha Mãe É uma Peça, iniciada em 2013, com a qual o ator arrastou aos cinemas 16,2 milhões de espectadores, somou 212 milhões de reais em uma bilheteria sem precedente para o filão. No teatro, arrebanhou mais de 5 milhões de pessoas com peças como 220 Volts e Hipera­tivo. Requisitado pelo mercado publicitário, seu cachê passava de 1 milhão de reais. Ao longo da pandemia, fez doações tão discretas quanto vultosas, desde ajudas mensais a profissionais do cinema e para compra de cilindros de oxigênio para Manaus, até 1,5 milhão de reais destinado ao projeto filantrópico Obras Sociais Irmã Dulce. No começo de 2021, fechou um contrato — que ainda não divulgara, por ter vínculo com a Globo — com a Amazon para ser a primeira estrela nacional a se tornar artista exclusivo da plataforma Prime Video. Chegou a debater planos de novas atrações, como séries, filmes e programas de diversos formatos. Só de luvas, teria recebido quase 2 milhões de reais.

Marcelo Adnet -
Marcelo Adnet – (Daryan Dornelles/.)

“Ele conseguiu cativar gente de todas as idades e classes sociais com um humor que captava com rara sensibilidade a essência do brasileiro.”
Marcelo Adnet

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Paulo Gustavo chegou aonde chegou por sua capacidade de falar a todo mundo, com linguagem de fácil acesso, mas sem concessões ao mau gosto. Dona Hermínia se tornou uma representação de mães, tias e avós tipicamente brasileiras. Conquistou a tradicional família — inclusive os não gays, e até os antigays, que riam das piadas que fazem pensar. Ela nasceu de experimentações do ator na Casa das Artes de Laranjeiras (CAL), onde se formou ao lado de grandes nomes da comédia atual, como Fábio Porchat e o grande amigo Marcus Majella. Fez sua estreia para o público na peça Surto, em 2004, antes de ganhar um monólogo em 2006 já batizado de Minha Mãe É uma Peça. A próxima parada seria uma série no Globoplay, que, infelizmente, não chegou a ser gravada.

MUSA - Com a mãe, Déa: briguenta, exagerada, amorosa e fonte de inspiração -
MUSA - Com a mãe, Déa: briguenta, exagerada, amorosa e fonte de inspiração – (Reprodução/Instagram)

Se em países como os Estados Unidos as drags são presença tradicional nos palcos de stand-up, no Brasil homens vestidos de mulher costumam ser relegados ao escracho explícito e muitas vezes discriminatório — como atestam expoentes do humor não tão distante, como Os Trapalhões. No alto escalão da comédia, Chico Anysio e Jô Soares também encarnaram personagens femininas em um tempo em que o machismo era regra no riso nacional. Na virada dos anos 1980, em pleno horário nobre, Jô fazia sucesso nas noites da Globo como a espalhafatosa Bô Francineide ou Ciça, a gordinha que malhava ao lado de Claudia Raia, e Anysio lançava críticas à ditadura na pele da Salomé, senhora gaúcha que telefonava para o ex-presidente João Figueiredo. Por mais que essas sátiras fossem inspiradas e divertidas, e seus criadores figuras dignas, inteligentes e sensatas, elas continham indisfarçáveis traços do DNA de um humor à moda antiga — calcado, em última instância, na exploração de arraigados preconceitos. Com Dona Hermínia, Paulo Gustavo trouxe uma nova e original contribuição à tradição do humorista vestido de mulher. Pelas mãos dele, o preconceituoso se tornou inclusivo.

Fabio Porchat -
Fabio Porchat – (Eduardo Monteiro/VEJA)

“O Paulo sempre me surpreendeu pelo raciocínio rápido, o tempo perfeito da comédia e a capacidade de transformar o trivial no hilário.”
Fábio Porchat

Apontadas como cria do teatro elisabetano, as drag queens teriam ganhado esse nome a partir da abreviação de Dressed as a girl (vestido de mulher), usada — inclusive, diz a lenda, por Shakespeare — para indicar em um roteiro que o ator faria um papel feminino. Abraçada pela subcultura gay, a arte de se montar com feminilidade exagerada ganhou feições de marco de resistência e, em certas situações, de afiado recurso de ironia. Com Minha Mãe É uma Peça, Paulo Gustavo adicionou notas de modernidade à simbologia, fazendo de Dona Hermínia uma fonte de humor popularesco, mas nunca vergonhoso, muito menos intolerante. Este talvez seja seu legado mais indelével para a comédia nacional: movida pelo sucesso de Hermínia, ela se dobrou à necessidade de ajustar o tom das piadas, conscientizando-se de que rir de si e com a plateia é melhor do que rir de alvos já fragilizados pela sociedade.

IDENTIFICAÇÃO - Dona Hermínia: de bobes e voz estridente, a mãe que é uma peça virou figura nacional -
IDENTIFICAÇÃO – Dona Hermínia: de bobes e voz estridente, a mãe que é uma peça virou figura nacional – (Reprodução/Instagram)

Parte de uma nova e atual escola de comédia brasileira, o ator desenvolveu uma linguagem solta com cara de improviso, típica da geração Porta dos Fundos, com um deboche inteligente e raciocínio rápido. Se Fábio Porchat, Marcelo Adnet e Leandro Hassum atraem o público por sua própria e individual personalidade, com um humor que vai da linguagem da internet ao escárnio do “gordinho”, os personagens de Paulo Gustavo se descolaram do criador para ganhar vida e estabelecer conexão com um público amplo e popular, da classe média aos mais humildes.

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Talentoso e dedicado, Paulo Gustavo teve a capacidade de fazer rir com todos os projetos que pôs de pé. “Tenho tudo para dar errado: meu rosto só é bonito de perto, meu corpo é esquisito e não tenho cabelo. Então, não espero nada de ninguém. Eu mesmo crio meus trabalhos”, orgulhava-se. A série Vai que Cola foi a mais vista em todos os tempos na TV fechada. O espetáculo Filho da Mãe, em que atuou ao lado de dona Déa, lotou estádios país afora. Mas foi no papel da mãe impagável, com seus vestidos coloridos e bobe nos cabelos, que ele se tornou patrimônio nacional. Quando a triste realidade se interpôs, Dona Hermínia não se abalou — permanecerá histriônica, viva para sempre nas telas e nas risadas do público. Já Déa, a mãe de verdade, tem de enfrentar a pior de todas as dores: ver o filho entrar para o rol das vítimas brasileiras de um vírus que começou abatendo os idosos e, agora, ataca sem trégua aqueles que ainda têm toda uma vida pela frente.

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HOMENAGEM - Aplausos nas calçadas: tristeza da legião de fãs que acompanhou a agonia do ídolo – (Alexandre Cassiano/Agência O Globo)

A morte de um filho inverte a ordem da vida — daí a dor avassaladora de quem fica, um sofrimento que a pandemia tem expandido para além das estatísticas usuais. O impacto fulminante dessa perda ainda é sentido por Rosangela Bracciali, de São José do Rio Preto, no interior de São Paulo: a filha Ketherin, de 27 anos recém-completados, estava de casamento marcado para setembro, mas teve o sonho interrompido. Ela morreu em abril, um mês após receber o diagnóstico de Covid-19. “O sofrimento é enorme, mas sou grata pelo tempo que vivemos juntas”, lamenta a mãe. “A perda de um jovem, no auge da vida e da carreira, não é esperada e aumenta o grau de incerteza e a sensação de vulnerabilidade”, explica Gabriela Casellato, psicóloga especializada em apoio a enlutados. O alto grau de contágio da pandemia tem feito milhares de mães perder seus filhos cada vez mais cedo para a Covid-19 no Brasil (veja no gráfico abaixo). O impacto positivo da vacinação na população idosa, a alta exposição dos jovens e a circulação das novas variantes do vírus contribuem para agravar o quadro. A faixa etária que vai dos 40 aos 45 anos, justamente a de Paulo Gustavo, foi a mais afetada: em abril, registrou um salto de 1 132% em casos graves e mortes em relação a janeiro. Entre as vítimas precoces está o clínico geral Fernando Gurginski, de 26 anos, que trabalhava na linha de frente de combate à doença em hospitais de Cuiabá, em Mato Grosso. “Tem vezes que consigo sublimar o sofrimento e vivo um dia após o outro. É como se um pedaço do meu coração tivesse sido retirado”, diz Regiane da Cunha, 50 anos, mãe de Fernando.

arte PG

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Como era de esperar, a morte de Paulo Gustavo no auge da carreira causou profunda comoção nas redes sociais, o megafone da legião de fãs impedidos pela pandemia de prestar homenagens nas ruas, em pessoa, como gostariam. A reação amplia o alcance da conquista de um homossexual declarado que chegou ao olimpo do mundo artístico vestido de mulher. “Mesmo o Brasil sendo um dos países que mais matam gays no mundo, ele se tornou uma unanimidade”, diz o amigo humorista Marcelo Adnet. A cantora americana Beyoncé, rai­nha do pop mundial que Paulo parodiou em 220 Volts, lamentou a perda em seu site oficial. Assim como autoridades e artistas dos mais variados núcleos culturais. Enfim, uma comoção.

No Congresso, a CPI da Covid fez um minuto de silêncio. Até o presidente Bolsonaro, pouco afeito a demonstrações de pesar pelos mortos da pandemia, pela primeira vez postou uma mensagem de condolências. Mas o recado mais bonito talvez tenha sido dito pelo próprio Paulo Gustavo, involuntariamente, é claro, no fim de 2020, em um especial de boas-festas da Globo: “Rir é um ato de resistência; a gente está precisando dessa máscara chata para proteger o rosto desse vírus e, infelizmente, essa máscara esconde algo muito preciso para nós, brasileiros: o sorriso”. Palmas para Paulo Gustavo. O Brasil sentirá a sua falta.

Colaboraram Giulia Vidale e Mariana Rosário

Publicado em VEJA de 12 de maio de 2021, edição nº 2737

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