Ao circular pela Praia de São Conrado, vizinha de sua casa-ateliê no Rio, ou durante as viagens com a família, o artista plástico Luiz Zerbini cultiva uma mania estranha. De olhar sempre atento a detalhes que a maioria ignoraria, ele cisma com objetos prosaicos — pode ser uma concha, um pedaço de isopor ou um pneu velho. Ato contínuo, recolhe a quinquilharia e leva para casa. “Já nadei para pegar uma corda de navio bastante pesada que vi no mar”, conta. Os objetos podem passar anos largados até o artista finalmente se lembrar e extrair algo deles — em um processo de criação que o próprio compara com o sistema digestivo dos bovinos. “Viver é ruminar paisagens. Talvez por isso me reconheça no olhar doce, perdido, silencioso de uma vaca que passa a vida ruminando. Remoendo o que viveu e sonhando memórias”, reflete Zerbini.
A mesma história nunca é a mesma – Luiz Zerbini
Itens obtidos segundo seu método errático estão entre as 140 obras da mostra Paisagens Ruminadas, que abre nesta quarta-feira, 19, no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio. Mas essas criações são apenas curiosidades pitorescas numa obra de abrangência oceânica que ganha sua maior retrospectiva no momento em que ele celebra cinco décadas de trajetória. Zerbini, de 65 anos, honra o epíteto de “artista multimídia”: seu arco de interesses vai da videoarte à escultura, passando pelas recentes monotipias — criações em que aplica imagens chapadas de folhas tipicamente tropicais e outros elementos no quadro. Ele é, sobretudo, um dos mais incensados pintores da arte brasileira atual — ou, mais que isso, um tradutor da alma nacional em imagens que sintetizam o caos tropical, unindo da vegetação luxuriante às mazelas da nação, como a pobreza e a violência urbana.
Sábados, domingos e feriados – Luiz Zerbini
O apego de Zerbini ao Brasil real é quase um atestado de origem: ele é um dos expoentes da Geração 80, safra de artistas que emergiu no país na primeira década pós-ditadura militar. “Zerbini está entre os pintores que produziram a primeira iconografia de um Brasil democratizado”, diz a curadora Clarissa Diniz. Ele nunca atingiu as cifras milionárias das obras de colegas dos anos 1980 como Beatriz Milhazes e Adriana Varejão. Mas seu prestígio é inquestionável. “Embora não tenha alcançado os preços delas, ele tem a mesma importância, e continua experimentando com vigor”, diz o marchand Jones Bergamin.
Pinturinhas para colorir – Luiz Zerbini
A capacidade de manter-se relevante tem a ver com um traço de personalidade: ele é um artista obcecado em olhar para a frente. Tanto que ficou confuso com a ideia de ser tema de uma retrospectiva. “Eu até esqueci quem eu era”, brinca. Sua sintonia com o Brasil de hoje fica evidente numa série de telas de alta voltagem que produziu a partir de 2014. Atendendo a uma provocação do curador Adriano Pedrosa, fez uma releitura contundente do quadro Primeira Missa, em que o acadêmico Victor Meirelles (1832-1903) idealiza o Brasil recém-descoberto: no lugar da harmonia entre brancos e indígenas, a obra expõe o choque brutal de mundos. Depois dela, o Masp comissionou outras telas de igual impacto, como sua visão demolidora — e, ao mesmo tempo, visualmente irresistível — do Massacre de Haximu, chacina de índios ianomâmis por garimpeiros em 1993.
A defesa do meio ambiente e dos indígenas é uma marca, mas há também irreverência na vida do pintor. Paulistano, ele estudou arte desde cedo e, na juventude, se juntou à trupe teatral carioca Asdrúbal Trouxe o Trombone, no posto de cenógrafo (ao lado de outro nome da Geração 80, Leonilson). Casou-se com uma estrela do grupo, a atriz Regina Casé, mãe de sua filha mais velha, Benedita (mais tarde, teve outras duas meninas, Rita e Violeta, de um segundo casamento). “O Asdrúbal foi um circo que passou e me levou. Não voltei mais”, diz. Desde então, Zerbini adotou o Rio como lar — um cenário deveras adequado para o furacão tropical dos pincéis.
Publicado em VEJA de 14 de junho de 2024, edição nº 2897