As cidades vazias, a desolação silenciosa entrecortada apenas pelas sirenes de ambulâncias e pela agitação na entrada dos hospitais — já faz três meses que a Itália encara essa amarga rotina na luta contra o coronavírus. Em paralelo à tragédia sanitária que ceifou mais de 30 000 vidas, contudo, uma “epidemia do bem” vem injetando cores na realidade cinzenta: a paisagem foi invadida pela arte de rua sobre a Covid-19. Em Bérgamo, cidade do norte atingida com fúria pela doença, o painel imenso na parede de um hospital retrata uma enfermeira que embala maternalmente o mapa em formato de bota da Itália. Mais ao sul, na Catânia, um artista estampou numa porta de metal a figura impávida da Mona Lisa — só que de máscara. Entre tantos exemplos, a apropriação da musa de Leonardo da Vinci se reveste de retumbante simbologia: é como se, ajudando o país a suportar o insuportável, as obras anunciassem o raiar de um novo Renascimento. O movimento, no caso, não é só italiano, mas global: do México à Austrália, da Rússia ao Senegal, a arte sobre a pandemia cobre muros e prédios como testemunha eloquente do destino que une os países sem distinção.
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A cada crise da história contemporânea, uma forma particular de expressão artística sai à frente na capacidade de resumir o espírito do tempo. Foi assim quando a pintura modernista de Pablo Picasso e companhia expôs o mal-estar do início do século XX, ou o cinema de Hollywood cumpriu seu papel de dar alento às massas durante a II Guerra. Em eventos mais recentes, a música popular tem sido a grande tradutora das angústias coletivas. Nos anos 60 e 70, o rock’n’roll foi a trincheira de resistência à Guerra do Vietnã. Discos como The Rising, de Bruce Springsteen, sintetizaram com agudeza a perda de certezas na esteira dos atentados do 11 de Setembro de 2001. Na pandemia de coronavírus, a música não se furta a ser novamente combativa, sob o impulso das lives e da corrida para criar canções sobre a nova realidade. Se fosse feito um instantâneo do mundo hoje, porém, o título de manifestação mais relevante iria sem dúvida para a arte de rua — por uma série de boas razões.
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A energia vital que move os artistas urbanos nunca esteve nos museus ou coleções privadas: ela vem da rua. Com a pandemia, esse diferencial implicou legitimidade absoluta para falar do cotidiano de agora. As vias e praças, espaços tão corriqueiros, tornaram-se desertas do dia para a noite, e a arte veio não só a ocupar seu vazio chocante. Os criadores se lançam de maneira corajosa neste momento aos locais públicos para representar em forma de grafites e murais que a doença pode assustar, mas não matará a semente da convivência humana — traço que faz das cidades, afinal, um sinônimo de civilização.
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Mais que tudo, a força dessas intervenções vem de sua mensagem esperançosa. Há humor e ironia — como na imagem na fachada de um hospital na Rússia que mostra um coronavírus espumando como monstro diante da enfermeira que o encara com serenidade. Há farpas políticas. Num mural em Berlim, o presidente americano Donald Trump e o chinês Xi Jinping — que travam uma disputa à parte em meio à tragédia do vírus — surgem se beijando de máscara. Mas o que impera, sobretudo, é a solidariedade. Um tocante mural australiano traz um profissional de saúde carregando o peso do globo. Banksy, inglês de identidade misteriosa que é o artista de rua mais famoso da atualidade, fez um singelo trabalho que exibe um menino brincando com uma enfermeira convertida em super-heroína. A obra é feita em homenagem aos profissionais — e também como um incentivo para eles no meio da guerra: ocupa o corredor de um hospital de Londres.
Banksy produziu, ainda, uma insolente colagem que coloca ratinhos dentro de seu banheiro na quarentena, com a inscrição: “Minha esposa odeia quando eu trabalho em casa”. A pílula de sua suposta intimidade expõe um fato que só realça os feitos dos artistas na crise: como bilhões de mortais, eles estão trancados em sua residência. “A grande maioria não está pintando na rua. Quem se arrisca tem de trabalhar muito protegido”, diz Eduardo Kobra, paulistano que tem murais impressionantes espalhados pelo planeta. Ele criou no refúgio de seu estúdio, em São Paulo, o painel Coexistence, que apresenta crianças de cinco religiões com máscara. A obra mede 3,5 metros por 6,5 metros e só deve se tornar um mural urbano quando a poeira baixar. Mas, por outras vias, também leva consolo ao mundo atingido pelo vírus. A disputa por versões em serigrafia do painel suscitou um concurso que arrecadou 400 000 reais para moradores de rua da maior metrópole do país. “É um momento de ter calma, fé e esperança”, prega Kobra. Que as cores da vida prevaleçam.
Publicado em VEJA de 20 de maio de 2020, edição nº 2687
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