Na Flip, o cabo-verdiano Joaquim Arena quer aproximar Brasil e África
Autor de 'Siríaco e Mister Charles' e 'Debaixo da Nossa Pele' estuda a presença negra na Europa e enxerga familiaridades entre as antigas colônias de Portugal

Um dos autores convidados a participar da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), o cabo-verdiano Joaquim Arena, de 61 anos, cresceu em Portugal sem perder o interesse pela terra natal e pela disseminação do povo africano no continente europeu, tema que passa pelos dois livros de sua autoria já lançados no Brasil: Debaixo da Nossa Pele e Siríaco e Mister Charles, ambos publicados pela editora Gryphus. Vencedor do prêmio Oceanos por Siríaco, o escritor chegou a mercados internacionais como China e Estados Unidos e debate ao redor do globo histórias diversas e pouco conhecidas sobre personalidades negras na Europa, recuperando causos mais antigos que a colonização das Américas por meio de prosa camaleônica, que vai do relato de viagem e do jornalismo ao romance. Em entrevista a VEJA, Arena pondera suas inspirações por trás das obras, tece paralelos entre brasileiros e cabo-verdianos, rebate o posicionamento anti-imigração mantido por partidos de extrema-direita e sugere que as antigas colônias de Portugal encontram na literatura um lugar comum.
Debaixo da Nossa Pele foi originalmente publicado em 2017, antes de Siríaco, e se propõe a investigar personagens e manifestações negras da história de Portugal. Como se chega a uma história que foi tão pouco registrada? O engraçado é que começou com um brasileiro que veio para Portugal no final dos anos 80, o José Ramos Tinhorão. Ele era um ensaísta, um pesquisador, um estudioso de música popular brasileira. Ganhou uma bolsa e foi para Portugal estudar a presença africana por lá. Disso nasceu um livro chamado Os Negros em Portugal: Uma Presença Silenciosa (1988), que eu peguei pra ler logo depois de sair e me fez querer escrever um pouco sobre o assunto. Com a passagem do tempo e a chegada da internet, ficou mais fácil pesquisar e encontrar mais informação, ao mesmo tempo em que a presença africana na Europa andava muito mal vista. Eles eram imigrantes, eram gente pobre. Notava ali a raiz de um certo racismo que hoje tomou conta do mundo.
Quis também escrever esse livro para provar que muito antes da era colonial e da exploração dos africanos já havia a presença no continente. Existiam professores universitários, membros das cortes, homens matemáticos, militares, generais e por aí vai. Relembrá-los é uma forma de mostrar que na Europa persiste muita ignorância em relação à história. Ao mesmo tempo, quis falar sobre a história da minha família e aquela dos cabo-verdianos que migraram no século XX, a partir dos anos 1960, para provar que o mundo, muitas vezes, não é preto no branco, existem outras matizes. Lisboa não é essa coisa branca que agora a extrema-direita quer fazer passar para se dizer pura. Não existe pureza nenhuma, é uma mentira.

Você nota paralelos entre a experiência de brasileiros em Portugal e aquela de cabo-verdianos? Posso dizer que sim, há um paralelo. Nos últimos anos, muitos brasileiros migraram para Portugal. É uma coisa incrível. Você vai em qualquer lado e está ouvindo o português brasileiro — em lojas, na rua, no transporte, nas empresas — e, para mim, isso é ótimo, porque Portugal era um país velho. Portugal e Itália são dois dos países mais velhos do mundo, cuja sociedade é envelhecida e precisa de sangue novo. O país precisava de sangue empreendedor, de gente nova que quer trabalhar. Brasileiros trazer alegria, comida, música e uma outra forma de viver, o que só pode enriquecer a nação. O problema é o discurso de extrema-direita anti-imigração, que sempre busca um bode expiatório. Pode ser o imigrante, o negro, o asiático ou brasileiro. É também o que acontece com Trump nos Estados Unidos, que deporta imigrantes como se o país não precisasse de trabalhadores. Se todos os imigrantes abandonassem os EUA, se todos os imigrantes abandonassem Portugal, a economia entraria em colapso.
Já em Siriaco e Mister Charles, o senhor imagina um encontro entre duas figuras que nunca aconteceu. De onde surgiu a ideia de reuni-los em uma trama? Vivi muito tempo da minha vida em Portugal, mas fui trabalhar com o presidente de Cabo Verde em 2017, e quando cheguei, li sobre a passagem do Darwin pelo país, faz agora uns 200 anos mais ou menos, o que achei muito interessante. Quanto ao Siríaco, eu já tinha pensado em escrever sobre ele porque o vi na capa de um livro, com a pele marcada do vitiligo. O chamavam de “menino tigrado”. Pesquisando, descobri que ele era do Sergipe e que, com 12 ou 13 anos, foi oferecido pelo governador da Bahia à rainha dona Maria de Portugal, como quem presenteia um cachorro. Para mim foi chocante e pensei comigo “tem uma história nesse rapaz”. Quando li sobre a viagem de Darwin, percebi a coincidência nas épocas e que seria plausível que eles estivessem em Cabo Verde na mesma época. Criei a história com base em muita pesquisa sobre Portugal, Cabo Verde e o Brasil, em especial a capitania hereditária de Sergipe del-Rei. O livro também tomou forma com a pandemia, quando fiquei isolado em casa sem o que fazer além de ler e escutar música. Lembrei que tinha começado essa história e decidi trabalhar mais nela. Quando você pega um projeto, depois de uns cinco, seis meses, você dá uma lida e descobre o que é que funciona e o que é que vai para o lixo.
Por aqui, também há um esforço nos últimos anos voltado para a valorização da literatura africana em português. Sente que esse movimento ganha força no mundo lusófono? Sim. O Brasil ficou muitos anos afastado da realidade africana. Ocorreram aproximações como, por exemplo, a colaboração entre o país e Moçambique no mundo do cinema, porque alguns cineastas, produtores e diretores brasileiros foram para lá, mas a separação tende a ser mais forte. Tem sido através da literatura que os brasileiros agora descobrem as raízes em comum com os países da África que falam português. Autores como Pepetela, Eduardo Alonso, Mia Couto, José Eduardo Agualusa e vários outros trazem uma literatura nova e, em troca, recebem um leitor novo, que é parte do público gigante desse enorme país. Participar da Flip, por exemplo, é uma alegria porque sou o primeiro cabo-verdiano e um de poucos africanos a ser convidado ao evento, que é um espaço voltado a quem quer encontrar coisas novas. É uma oportunidade extraordinária.
O quão diferente é entrar em contato com leitores brasileiros? Tive essa primeira experiência em São Luís, no Maranhão, onde fui recebido em 2024 na Academia Maranhense de Letras. Fiquei muito impressionado pelo interesse. Estavam mais de 300, 400 pessoas fazendo fila no final para eu assinar o livro. Para nós, é uma descoberta extraordinária, não é? Porque a gente, nós da África, da língua portuguesa, a gente viaja muito para a Europa, mais para Portugal, onde o clima é diferente. As pessoas gostam, mas não são tão abertas, não são tão interessadas. Até porque nós estamos muito mais próximos de vocês do que dos portugueses. A gente aqui se trata como primo, praticamente. Então, eu me recordo que em Tiradentes, no final da apresentação do livro, muita gente veio falar comigo e perguntou ou falou de Cabo Verde, ou da África, com curiosidade sobre aquilo que a gente escreve, como é que é o nosso país, quais são as semelhanças. Às vezes, a gente escreve sobre coisas que são muito comuns. Aqui em Paraty, sinto essa proximidade cultural resgatada. A palavra é “resgate”. Compartilhamos uma familiaridade que o tempo separou. Estamos recuperando tempo perdido.
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