“Nasci na Bulgária, mas virei caboclo”
Ilko Minev, 75 anos, veio para o Brasil como refugiado político e hoje escreve romances sobre a Amazônia
Faz quase cinquenta anos que vivo na região metropolitana de Manaus. A Amazônia é minha fonte de inspiração, de onde tiro as histórias dos meus livros. O mais recente, Nas Pegadas da Alemoa, lançado em novembro do ano passado pela editora Buzz, me surpreendeu ao virar rapidamente um best-seller. Ele nasceu de um caso curioso. Há alguns anos, meu filho viu uma cruz enorme com uma suástica perto do Rio Jari, no Amapá. Descobri que houve uma expedição nazista na região pouco antes da II Guerra. Fiz então uma mistura de ficção com realidade, com um pé no Brasil e outro na Europa. Essa é uma prática comum na minha escrita e algo que diz muito sobre mim — afinal, vim da Bulgária, mas, no Amazonas, virei caboclo.
A carreira de escritor não foi algo que aconteceu com facilidade. Nasci em Sófia, na Bulgária, em 1946. Lá, quando jovem, cursei literatura — meu primeiro grande amor — na universidade. Tudo mudou em 1970. A Bulgária, então comunista, passou por uma ditadura rígida durante a Guerra Fria e eu fui perseguido por me envolver com um grupo de dissidentes do regime. Fugi do meu país como refugiado político. Cheguei a correr risco de vida ao atravessar a fronteira, mas consegui asilo na Bélgica. Em termos práticos, a literatura não me ajudaria a sobreviver, principalmente na minha situação, o que me levou a estudar economia e me dedicar a ser administrador de empresas.
Minha história com o Brasil começou em 1972, quando recebi um convite para trabalhar em São Paulo. Eu não falava português direito, mas tinha familiares vivendo aqui. Comecei em uma empresa de produtos eletrônicos, e, no mesmo ano, me chamaram para tocar uma filial em Manaus. Aceitei o novo desafio e me mudei para a capital do Amazonas. Depois, passei a trabalhar na rede de lojas Bemol. Foi nessa época que conheci minha esposa, Nora Benchimol, filha de Samuel Benchimol, um dos fundadores da Bemol, em um pequeno clube judaico. Não sou muito religioso nem muito ortodoxo, mas sigo as tradições judaicas. Com minha esposa, fundamos o Clube Hebraica em Manaus. Trabalhei na Bemol por mais de quarenta anos, cheguei à vice-presidência, e me aposentei em 2012, quando, estabilizado, pude me dedicar ao sonho de ser escritor.
Desde que pisei em Manaus fiquei maravilhado com a Amazônia e não tive dúvida de que ela seria uma constante em minhas histórias. Lembro da sensação de assombro quando, em meu primeiro fim de semana, fui pescar e dei de cara com alguns botos. Eu tinha a inspiração, mas deparei com um empecilho. Minha escrita em português ainda não era tão boa e o búlgaro estava enferrujado. Foi um desafio finalizar o meu livro de estreia, Onde Estão as Flores? — inspirado no diário de um tio meu que se mudou para o Norte do Brasil fugindo do nazismo. Na época, minha esposa me ajudava revisando o texto.
Minha conexão com o Brasil e a Amazônia é muito profunda. Adoro me enfiar no meio das florestas e conhecer as regiões sobre as quais escrevo. Num episódio dramático, em 2006, me perdi na mata com meu filho e alguns amigos. Normalmente, fazíamos passeios com guias, mas naquela ocasião decidimos seguir uma cópia do trajeto que pegamos na internet — o que deu tremendamente errado. Nos perdemos pelos rios e os celulares não funcionavam, pois as árvores eram muito grandes. Meu filho e um amigo decidiram seguir o rio para encontrar um local mais aberto e tentar pedir ajuda. Foram dias sobrevivendo à fome e à hipotermia até um helicóptero de buscas finalmente nos encontrar. É uma região muito rica em histórias e acontecimentos que poucos conhecem. Me divirto escrevendo e acredito que ainda há muita coisa para ser contada.
Ilko Minev em depoimento dado a Marcelo Canquerino
Publicado em VEJA de 16 de fevereiro de 2022, edição nº 2776