Uma anedota do meio musical diz que para trocar uma lâmpada são necessários dez bateristas: um para realizar a operação e outros nove para dizer que Neil Peart faria melhor. Integrante do power trio canadense Rush, no qual se dividia entre as baquetas e as letras das canções, ele foi celebrado como rara unanimidade no universo do rock. Pode-se não reconhecê-lo como o maior baterista do gênero ou mesmo detestar o Rush, mas é impossível contestar a destreza inovadora de Peart no instrumento. Fã das pancadas de Keith Moon, do quarteto inglês The Who, e do jazzista Buddy Rich, ele unia paixão a uma técnica genuinamente matemática. Um exemplo: em Subdivisions (1982), criou um acompanhamento para cada verso.
Em 1974, ao entrar para o time do Rush, a convite do baixista Geddy Lee e do guitarrista Alex Lifeson, Peart logo mostrou que não se restringiria a ditar ritmos nos pratos, caixas e bumbos. Leitor voraz de ficção científica e amante dos textos da conservadora Ayn Rand (1905-1982), começou a escrever, e muito — e a banda mudou de patamar. O Rush passou por uma imensidão de estilos, do hard rock ao progressivo, do pop rock aos teclados eletrônicos.
Peart sabia ter se tornado um ícone, e nessa posição tocou a vida, até defrontar-se com uma tragédia pessoal, o que impôs um interregno ao Rush. Em agosto de 1997, uma de suas filhas morreu num desastre de carro. Dez meses depois, Peart perderia também a mulher, vítima de câncer. Ele abandonou o grupo e passou a viajar de motocicleta pelos EUA e Canadá. A aventura virou um livro, A Estrada da Cura, lançado no Brasil em 2014. A trinca retomaria as atividades em 2001 e continuou a excursionar até 2015, quando problemas de saúde (tendinite e dores nos ombros) impediram Peart de tocar. Ele morreu aos 67 anos, em 7 de janeiro, em Santa Mônica, na Califórnia, em decorrência de um câncer no cérebro.
Publicado em VEJA de 22 de janeiro de 2020, edição nº 2670