Após falar por quase quarenta minutos em videoconferência com VEJA, o americano Reed Hastings propõe: “Você conhece Los Angeles? Vou mostrar algo bacana”. O executivo de 60 anos — que em 1997 foi um dos fundadores da Netflix e seria o motor da transformação da empresa de entrega de DVDs pelo correio em gigante do streaming — caminha então até uma janela e vira a câmera para mostrar a vista de seu apartamento. Bem adiante se vê um ícone da cidade do cinema: a torre da Capitol Records, localizada a poucos quarteirões da Calçada da Fama. “Sou um cara afortunado”, diz. O comentário é despretensioso, mas ganha novo sentido nos dias que correm.
Enquanto a indústria do cinema amargou perdas pesadas na pandemia, a Netflix seguiu impávida em sua rota de expansão com as pessoas em casa: adentrou 2021 com mais de 200 milhões de assinantes globais e prepara ambiciosos investimentos em mercados como o Brasil — onde completará dez anos no próximo 5 de setembro. Não bastasse o sucesso de público, agora a plataforma solidifica uma imagem de prestígio. Já era esperado que, no ano do coronavírus, a Netflix se daria bem no anúncio dos indicados ao Oscar, na segunda-feira 15. Mas a lista veio melhor do que a encomenda. Com 35 indicações de dezesseis produções (confira as principais), a empresa confirma-se como força galvanizadora do entretenimento. Se alguém realmente enxerga Hollywood do alto, é Reed Hastings.
Em 23 anos de existência, a Netflix liderou uma onda de inovação na qual a conquista do Oscar é desdobramento previsível. Nascida como uma locadora diferenciada de DVDs, a empresa rapidamente captou uma oportunidade no ar. “Tínhamos o palpite de que a internet um dia seria veloz o suficiente para as pessoas assistirem a filmes e séries”, conta Hastings (leia entrevista). Isso se confirmou com o lançamento do YouTube, com sua torrente de vídeos caseiros e amadores, em 2005. Percebendo que a corrida tinha começado, a Netflix lançou seu serviço de streaming pouco depois, em 2007. “Foi tudo muito rápido”, diz Hastings. Com formação em inteligência artificial na Universidade Stanford, ele logo tomou a frente do negócio criado com outros sócios, e fez da Netflix uma potência que viraria Hollywood de cabeça para baixo.
A razão de ser uma força tão transformadora é cristalina: desde o advento da TV, nos anos 30, nada teve tanto impacto quanto a Netflix sobre os hábitos dos espectadores. Olhando em retrospecto, as fitas VHS, os DVDs e a TV paga parecem só um prelúdio da revolução mais radical trazida pelo streaming. A Netflix mudou a relação das pessoas com a TV ao disponibilizar todos os episódios das séries ao mesmo tempo, quebrando a regra das estreias a conta-gotas. A mudança deu origem a um novo mantra comportamental — as maratonas — e implodiu de vez a ditadura das grades de programação televisiva.
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Mais decisiva é a consequência advinda daí: a plataforma revelou-se a perfeita expressão do entretenimento para os tempos atuais, ao estabelecer uma simbiose entre o hábito de ver TV e as redes sociais. Tudo que cai na Netflix vira assunto na internet e pauta as conversas. Foi assim que Cobra Kai, produção on-line esquecida sobre o universo Karatê Kid, virou fenômeno ao chegar à plataforma. Até quando projeta atrações críticas às hordas virtuais, como o documentário O Dilema das Redes, a Netflix nutre-se de sua capacidade de mobilizá-las: é o usuário das redes, afinal, quem mais se interessa por esse debate.
A Netflix inovou, sobretudo, por inaugurar o consumo de filmes e séries de modo genuinamente global: produções de uma algaravia de línguas chegam às casas das pessoas dos Estados Unidos à Índia. Essa possibilidade hoje se tornou tão frugal que mal percebemos quanto ela mudou nossas vidas. Dados exclusivos mostram que, se os brasileiros assistiam basicamente a produções em língua inglesa nos primórdios da plataforma, agora elas dividem espaço com a teledramaturgia de outras línguas. Dos dez títulos mais vistos no país desde 2012, metade não é falada em inglês — são brasileiros, franceses e espanhóis.
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Como ocorre sempre que um outsider desbrava um novo veio do entretenimento, a Netflix largou em vantagem, mas provocou uma corrida pelo ouro do streaming. Se a Amazon de Jeff Bezos há tempos vem ampliando a musculatura de seu Prime Video, a pandemia acelerou a velocidade da competição. Um dos grandes estúdios do cinema, a Warner, acusou o golpe que a ascensão do streaming provocou em Hollywood: anunciou, faz poucos meses, que passaria a lançar todas as suas produções simultaneamente nas salas de exibição e em seu serviço de streaming, o HBO Max. O maior desafio ao domínio da Netflix vem, no entanto, do gigante Disney. Sua plataforma, a Disney+, nasceu impulsionada por franquias imbatíveis, como Star Wars (da qual deriva a bem-sucedida The Mandalorian) e o “multiverso” Marvel (que, com WandaVision, transpôs sua eficiência nos filmes para os cinemas para o formato das séries). O baque do coronavírus nas salas de exibição foi o impulso que faltava para a Disney se atirar de vez no streaming, lançando diretamente lá títulos como o aguardado Mulan.
Com seu poderio, a Disney prevê se igualar à Netflix em número de assinantes em 2023 — e desbancar sua liderança em 2024. É razoável supor, no mínimo, que a concorrência na área será animada nos próximos anos. Antevendo isso, a empresa de Reed Hastings promoveu na última década um audacioso plano para dispor de conteúdo próprio capaz de fidelizar os espectadores. À custa de um endividamento na casa dos 16 bilhões de dólares, investiu sem miséria na contratação de atores, diretores e roteiristas estrelados. No front das séries, que ainda são seu carro-chefe, gastou um total de 600 milhões de dólares pelos passes de dois criadores de peso, Ryan Murphy e Shonda Rhimes. Tem o toque de Shonda seu maior sucesso até agora. Em janeiro, a romântica Bridgerton bateu o recorde de audiência das séries na plataforma, com 82 milhões de lares no mês de estreia. Enquanto trava a guerra global, a Netflix luta em frentes locais: no Brasil, a concorrência com a Globoplay, seu maior rival no país até agora, a levou a redobrar a aposta em produções nacionais. Nos próximos meses, vai lançar desde um filme como Cabras da Peste, comédia com sotaque nordestino estrelada por Matheus Nachtergaele, até o longa juvenil Confissões de uma Garota Excluída, com Klara Castanho.
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Na seara dos longa-metragens, os resultados da política agressiva se verificam do volume — o ritmo hoje é de uma estreia por semana — às indicações ao Oscar. Com sua escalada na premiação (confira quadro ), a Netflix busca prestígio não só de crítica: para quem tenta tomar o cetro do cinema, disponibilizar com exclusividade os “filmes do Oscar” é um chamariz inegável. Não foi só ela quem percebeu isso. A plataforma é a campeã do ano, com 35 indicações — detendo inclusive o filme mais aquinhoado, Mank, que reconta os bastidores do clássico Cidadão Kane (1941). Mas na sequência vem a Amazon Studios, com doze. Ambas ficam à frente das grandes, como a Warner (oito indicações), Focus Features (sete) e Sony (seis).
Nos últimos anos, a Amazon também fez a lição de casa: criou seu complexo de estúdios na Califórnia e produziu filmes que têm uma marca própria — o excelente O Som do Silêncio, sobre um roqueiro que revê sua vida ao perder a audição, arrebanhou seis indicações. Já a Netflix segue lógica oposta: em vez de investir num estúdio seu, faz parcerias pelo mundo, o que lhe traz agilidade e diversidade. O desenlace de mais essa batalha pelo coração do espectador já tem data marcada: será em 25 de abril, dia da festa do Oscar.
Publicado em VEJA de 24 de março de 2021, edição nº 2730
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