Combalido por uma doença reumática e ameaçado pelo papa de ser levado a Roma “preso e acorrentado”, Galileu Galilei deixou Florença em 20 de janeiro de 1633 rumo a seu célebre destino: a condenação por heresia no mais infame julgamento intelectual da história. Aos 68 anos, o astrônomo e matemático enfrentou um contratempo no meio do caminho até o tribunal da Santa Inquisição — diante do qual seria forçado a negar sua tese de que a Terra gira em torno do Sol, e não o contrário, como se acreditava. Com a Itália assolada pela peste negra, foi obrigado a ficar mais de vinte dias em penosa quarentena. Como revela já no título a oportuna e excepcional biografia Galileu e os Negadores da Ciência, do israelo-americano Mario Livio, o isolamento sanitário não é a única coincidência entre aqueles tempos de trevas e os dias pandêmicos atuais. Agora que a verdade dos fatos e o trabalho dos cientistas estão de novo sob ataque, nas redes sociais e até nos gabinetes do poder, não custa reforçar: a Terra dá voltas ao redor do Sol, sim, como atestava o gênio italiano. E, de uma vez por todas, não é plana.
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Astrofísico que por 24 anos conduziu pesquisas no telescópio espacial Hubble, Livio animou-se a escrever sobre Galileu (1564-1642) ao constatar que nenhuma biografia do homem que fundou a ciência moderna levava a assinatura de alguém do ramo. A indignação com o novo surto mundial de negacionismo foi, contudo, um impulso decisivo para o autor. “Estou chocado com o nível de animosidade que se vê hoje em relação à ciência, do ceticismo com o aquecimento global à desinformação sobre a Covid-19”, disse Livio a VEJA pelo Zoom. “Galileu teve de lidar com uma realidade muito diferente há 400 anos. Mas sua história oferece lições valiosas para nós.”
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A simbologia de Galileu se assenta sobre feitos sólidos. Filho de uma mãe irascível e amarga, e de um pai de origem nobre que se converteu em músico falido, ele foi um típico produto da Renascença tardia. Aos 19 anos, abandonou a faculdade de medicina para se dedicar à matemática — disciplina que via como o único caminho para explicar os fenômenos naturais. Mas seu arco de interesses ia muito além: espraiava-se das artes à literatura, da filosofia ao estudo das marés. Galileu era não só amante dos números, mas da poesia. Nas horas vagas, tocava alaúde. Era pai de três filhos: um rapaz que virou músico e duas mulheres que encaminhou para serem freiras. Cartas atestam a relação fraternal com uma delas, a irmã Maria Celeste, morta com apenas 33 anos.
A biografia mostra, porém, que Galileu estava longe ser um gênio nas relações pessoais. “Apesar de suas proezas científicas, não devemos ter a impressão de que fosse uma pessoa das mais fáceis ou amáveis”, diz Livio. “Ele era capaz de demonstrar intolerância e agressividade destruidoras, empunhando sua pena afiada para atacar cientistas que discordassem dele.” Galileu era, enfim, um poço de vaidade. Ganhou popularidade, além disso, por ser mestre na arte da autopromoção e na divulgação de suas ideias — o que seria sua ruína.
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Versado no turbilhão de teorias que emanavam da mente de Galileu, Livio traça uma análise criteriosa de suas inovações. Na física, antecipou conceitos que, quase um século depois, desembocariam nas Leis de Newton, ao conduzir experimentos com objetos em queda livre — dos quais a imagem mais famosa, que o retrata fazendo a experiência do alto da Torre de Pisa, provavelmente é um mito. Na astronomia, Galileu criou o tataravô dos telescópios e usou-o com um fim inédito: a observação do céu. Com ajuda desse instrumento, descobriu satélites de Júpiter e proclamou que a Lua tinha montanhas. Viu que Vênus tinha fases e que a Via Láctea continha muitas estrelas.
Eram revelações fascinantes, mas que equivaliam a brincar com fogo na atmosfera repressiva da Contrarreforma. A reação tornava-se particularmente severa quando se punha em dúvida o “status” da Terra. Na visão assumida pela Igreja, ela ocupava o centro da Criação. Com seus estudos, porém, Galileu foi acumulando indícios a favor da teoria heliocêntrica de Nicolau Copérnico (1473-1543), que descreveu o sistema solar como é de fato: com os planetas, inclusive a Terra, orbitando o Sol.
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Enquadrado pelos inquisidores pela primeira vez em 1616, Galileu passou a disfarçar sua defesa da teoria, mas nunca desistiu dela. Desancando os que condenavam a ciência com base na visão literal da Bíblia, apontou ser impossível “que o mesmo Deus que nos deu nossos sentidos, nossa razão e nossa inteligência desejasse que abandonássemos seu uso”. Num livro escrito anos depois, foi tão ácido com os críticos que o próprio papa Urbano VIII se sentiu ridicularizado, e não deixou barato. Corajoso, mas não bobo, Galileu amenizou textos na tentativa de um acordão. Não adiantou. No julgamento, em 1633, ainda negou suas convicções — o que não era sinal de covardia, mas imperativo de vida ou morte. Diz a lenda que, ao ser condenado à prisão domiciliar, em que viveria os dias finais, Galileu sussurrou: “E pur si muove!” — e, no entanto, ela se move. A Terra de fato se moveu, assim como a roda da história: em 1992, após 350 anos, o papa João Paulo II reconheceu que Galileu estava certo. Que seu exemplo sirva de alerta contra os perigos do novo negacionismo.
Publicado em VEJA de 9 de junho de 2021, edição nº 2741
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