Eram 3 da manhã, na cobertura em Botafogo, quando o músico Dadi acordou com um homem batendo à porta. Além de ser mais velho do que a turma dos Novos Baianos, ocupantes do apartamento, o visitante tinha cabelos curtos e usava terno e gravata. “Sujou!”, pensou Dadi. Mas o recém-chegado não era um policial dando uma batida na casa onde decerto encontraria substâncias proibidas: era ninguém menos que João Gilberto. Foi assim o primeiro encontro entre o baiano bossa-nova e os Novos Baianos. Outros se seguiriam, em um sítio que o grupo ocupou no Rio de Janeiro, e é nesse cenário que o escritor mineiro Sérgio Rodrigues ambienta A Visita de João Gilberto aos Novos Baianos, narrativa que dá título a sua nova coletânea de contos. No texto, tem-se a impressão de que dois mundos, o da bossa nova dos anos 1950 e o do pós-tropicalismo dos anos 1970, tão próximos e tão distantes, não sabem bem o que fazer um diante do outro. Mas o conflito, tão comum quando gerações diferentes se encontram, é suspenso e, sob as bênçãos dos santos da Bahia, abrem-se alas para um carnaval cordial.
É o primeiro conto do livro, que é curto — sete narrativas ao todo. A obra divide-se, como um disco, em Lado A e Lado B. E há uma terceira seção, intitulada Terceira Margem, que inclui um único texto, talvez uma nota fora do tom do livro — mas, ao mesmo tempo, sua narrativa mais bem realizada: a novela “Jules Rimet, meu amor (folhetim)”, na qual Rodrigues embaralha fato e ficção ao especular um final diferente para a taça que coroou o tricampeonato da seleção brasileira de futebol, em 1970, e veio a ser roubada. É como se o autor perseguisse o Santo Graal da nossa identidade.
A bossa de Sérgio Rodrigues se faz com variações de uma nota só: a metalinguagem. O Lado A reúne três narrativas. Além do conto de abertura, há “A fruta por dentro”, no qual entramos na atmosfera de uma sufocante noite de núpcias no século XIX; e “Vas preposterum”, em que flagramos os baixos instintos do fictício Padre Simão, amigo do poeta inconfidente Cláudio Manuel da Costa, preso por conspirar contra a coroa.
É no Lado B, porém, que se acentua o gosto por escrever tendo a literatura como tema. O melhor momento se dá quando o autor aposta no humor e na galhofa, sem piedade, como em “Cenas da vida zooliterária, volume 1”, com dez pequenas partes, que vão desde a denúncia do compadrio literário em “Clube”, passando pelo divertidíssimo “Relato de Magnuson, um homem de bem”, no qual se ri da obsessão brasileira pelo Nobel, até uma saborosa e ácida alegoria em “Geração 90 na Grandpa: anatomia de uma tragédia”. Nesta seção do livro, Sérgio Rodrigues faz uma espécie de versão pocket e tupiniquim de A Literatura Nazista na América, do chileno Roberto Bolaño. Se na obra do chileno há certo tom trágico, ao refletir sobre a proximidade do belo (a literatura) com o mal (o nazismo), o que se observa nestas peças ficcionais, fina flor de fúria e corrosão, é a encarnação do postulado do filósofo espanhol Ortega y Gasset: “Entre querer ser e pensar que já se é, vai a distância entre o sublime e o ridículo”.
O “disco” de Sérgio Rodrigues inspira-se, desde o título, em “O Concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro”, cujas linhas iniciais lhe servem de epígrafe. Também nesse conto de Sérgio Sant’Anna a metalinguagem exerce um papel decisivo. Mas em 1979, quando se passa o conto de Sant’Anna, no mesmo aeroporto em que João Gilberto chegava dos Estados Unidos, desembarcava também o líder comunista Luís Carlos Prestes, regressando do exílio, graças à anistia. Nada disso escapou ao olhar do escritor. Sant’Anna extrapolou a metalinguagem para abarcar a realidade que o cercava. A recusa de João Gilberto em cantar no Canecão foi a metáfora para que se celebrasse uma ode ao silêncio. A passagem do tempo entre os dois contos escancara o esgotamento de um modelo. Seria injusto reduzir a obra de Sérgio Rodrigues a firulas e jogos de linguagem, sobretudo considerando os romances Elza, a Garota e Drible, ambos devotados a temas pulsantes — a política e o futebol. Mas, em A Visita de João Gilberto aos Novos Baianos, o olhar sobre o passado se esvazia como um revival pop. É emblemático que o João Gilberto de hoje, doente, seja incapaz de dizer não: foi interditado pela Justiça em ação movida por sua filha. E é como se certa ficção nacional, voltada para o próprio mundo, também estivesse interditada.
Publicado em VEJA de 3 de julho de 2019, edição nº 2641
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