Quando Clarice Lispector lançou seu romance de estreia, Perto do Coração Selvagem, em 1943, o livro foi classificado como “hermético e incompreensível”. Nele, a autora, então com 23 anos, reflete sobre a jornada psicológica de uma dona de casa em busca de si mesma. Três décadas depois, Clarice relembrou em uma carta os adjetivos aplicados pelos críticos à narrativa, intrigada pelo fato de a obra, mais tarde, ter se tornado um best-seller. “Decidi perguntar a um amigo: o que está acontecendo? O livro continua o mesmo. E meu amigo então respondeu: É que as pessoas se tornaram mais inteligentes, de uns anos para cá.”
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A anedota exemplifica os ingredientes que temperam muitas das quase 300 missivas transcritas no livro Todas as Cartas. Os textos íntimos são abundantes em ironia e autocrítica, além de evidenciar facetas da ficção dita “lispectoriana” e sua universalidade. No ano do centenário da escritora, revelam quão relevante e atual ela ainda é. Exímia romancista e contista, autora de artigos, crônicas e colunas femininas, Clarice viveu quase duas décadas fora do Brasil, acompanhando o marido diplomata pela Europa e Estados Unidos. Com olhar cosmopolita, fala nas correspondências sobre os absurdos do cotidiano, as agruras da condição humana e as banalidades da vida, assim como expõe seu sentimento de deslocamento. São frestas curiosas que captam relances de sua personalidade misteriosa e reclusa, que fez dela uma figura tão imperscrutável quanto seus textos de admirável originalidade.
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Desvendar a personalidade de Clarice e os significados de sua obra é uma missão abraçada por biógrafos e especialistas dos mais variados — as interpretações passam desde pelas mãos de psicanalistas até de interessados (vejam só!) em misticismo e física quântica. Em comum, eles se debruçam sobre as entrelinhas de seus textos e tentam preencher as lacunas históricas da vinda de sua família de judeus ucranianos para o Brasil e da sua ascensão profissional precoce. O interesse por ela ainda ganhou impulso com as redes sociais, que lhe conferiram autoridade de guru motivacional e feminista, com frases (muitas delas fake) compartilhadas à exaustão. Todas as Cartas se mostra, assim, um compêndio saboroso. E amplo: reúne correspondências datadas de maio de 1940 a novembro de 1977, um mês antes da morte de Clarice — em 9 de dezembro, aos 56 anos, vítima de um câncer de ovário. “O livro pode ser lido como uma espécie de autobiografia, não só para conhecer a obra da escritora, mas aspectos da vida social e política brasileira”, diz a biógrafa Teresa Montero, que assina o prefácio.
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Clarice pincela nas correspondências o fundo histórico do tempo em que viveu. Aos 21 anos, envia duas cartas ao então presidente Getúlio Vargas, pedindo a efetivação de sua cidadania: “Não possuo, nem elegeria, outra pátria senão o Brasil”. Na Europa da II Guerra, ela se assusta com o fantasma do nazismo: “Veem-se [nas ruas] cartazes de propaganda alemã, o que dá um aspecto pau às coisas” (“pau” era uma gíria que ela gostava de usar e seria algo como o “porrada” de hoje). A aparência de madame (em uma carta, ela festeja a compra de um batom novo em plena escassez da guerra) esconde uma mulher apegada, no íntimo, a simplicidades. Ela faz ácidas críticas à elite, que bem poderiam ser aplicadas ao recente noticiário sobre os barracos inacreditáveis de gente endinheirada do Rio e São Paulo. “Conheci pessoas simpáticas. Muitas esnobíssimas. Gente cheia de certezas e de julgamentos, de vida vazia e entupida de prazeres sociais. É evidente que é preciso conhecer a verdadeira pessoa embaixo disso”, escreve às irmãs, Tania e Elisa, após uma festa em Lisboa.
Entre os destinatários de cartas inéditas estão autores como João Cabral de Melo Neto, a quem ela rasga elogios (“Sendo eu ateia e o senhor um religioso profundo, o seu Deus é o meu”), e os amigos Rubem Braga, Erico Verissimo e sua esposa, Mafalda. Além de Lúcio Cardoso, com quem trava conversas profundas sobre seus livros. “Cada vez mais parece que me afasto do bom senso, e entro por caminhos que assustariam outros personagens, mas não os meus, tão loucos eles são”, diz ela. Esses loucos protagonistas não só marcaram a carreira literária de Clarice, como servem de ponte para sua personalidade: a complexa Joana, do “impenetrável” Perto do Coração Selvagem; G.H e sua experiência kafkiana com uma barata em A Paixão Segundo G.H.; e a nordestina Macabéa, que busca por uma vida melhor na cidade grande em A Hora da Estrela. “Clarice é a antiautoajuda que ajuda”, diz a psicanalista Maria Homem. “Escreve sobre a realidade, a morte, a ferida que dói. Ela diz a Macabéa em uma bola de cristal que tudo ficará bem, para em seguida atropelá-la. Clarice não é um entretenimento banal.”
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Originalmente Chaya Pinkhasovna Lispector, Clarice era ainda bebê quando sua família fugiu da Ucrânia, então aterrorizada pelos bolcheviques. O grupo desembarcou em Maceió e se instalaria no Rio, cidade-paixão da autora. Quando ela vive na serena Berna, na Suíça, escreve que “falta demônio na cidade”. Na semana passada, o espírito “selvagem” de que tanto sentia falta mostrou que segue forte por aqui: após uma festa em meio à pandemia, a estátua em homenagem a ela na Praia do Leme acabou cercada por lixo. De forma irônica, o enigma Clarice se encontra com o enigma Brasil.
Publicado em VEJA de 7 de outubro de 2020, edição nº 2707
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