O delicioso mergulho de Julian Barnes na Paris da Belle Époque
Em 'O Homem do Casaco Vermelho', escritor inglês recria capital francesa a partir da biografia de um cativante personagem
A figura é imponente. Um homem elegante e “repugnantemente bonito” posa vestindo um robe de chambre vermelho. A cor e a exuberância do traje captam a atenção dos espectadores. Num segundo olhar, as mãos do modelo sobressaem, com dedos longos e delicados que parecem bailar em posições inusuais. Mãos de pianista? Não, mas de habilidades igualmente precisas: são as ferramentas de trabalho do ginecologista francês Samuel Pozzi (1846-1918). O retrato em que o pintor John Singer Sargent eterniza o pioneiro desse ramo da medicina é o ponto de partida do novo livro do inglês Julian Barnes.
Aos 75 anos, multipremiado, autor de mais de uma dezena de romances, livros de memórias e ensaios, Barnes não precisa mais provar nada: já é um titã. Mas seu ensaio O Homem do Casaco Vermelho é uma pequena obra-prima sobre a vida, a morte, costumes, belezas, tragédias e excessos da Belle Époque. Pozzi foi um dos protagonistas desse período breve, mas de imensa efervescência cultural e científica, espremido entre a derrota da França na Guerra Franco-Prussiana (1870-71) e a vitória na I Guerra (1914-18). Filho de italianos, Pozzi valeu-se de sua inteligência, carisma (era “o” mister simpatia de sua época) e beleza para trilhar sua bem-sucedida carreira como médico, professor, senador, amante das mulheres e das artes.
Seu círculo de amizades e pacientes incluía nomes como Mallarmé, Oscar Wilde, Henry James, André Gide, Victor Hugo, Marcel Proust, Anatole France, Rodin, Monet, Renoir, Degas, entre muitos outros, e boa parte da realeza europeia. Ele também tinha, lembra Barnes, “a reputação de ser um ‘sedutor incorrigível’, um médico que dormia com suas pacientes”. Casou-se com Therese Loth-Cazalis — que, quando “jovem e muito rica, era consequentemente ‘linda’” —, mas manteve várias amantes, de cantoras de ópera e nobres até um longo affair com a atriz bissexual e ninfomaníaca Sarah Bernhardt.
Box – Em Busca do Tempo Perdido
Se fosse um diagrama, o livro teria o formato de uma constelação, com Pozzi como estrela ao centro — como aquelas cortiças com fotos e alfinetes de filmes policiais. A partir das muitas conexões do médico, Barnes faz um panorama da Belle Époque e tece comentários sobre sua importância para o mundo. O autor não humilha os leitores com seu vastíssimo conhecimento histórico e literário, mas sabe usar seu arsenal para iluminar os personagens e o período. Com sua prosa irônica e sem rodeios, somos apresentados em O Homem do Casaco Vermelho às fofocas e aos fatos mais importantes da época. A leitura é tão prazerosa e fácil quanto assistir a uma boa sitcom — daquelas em que ninguém precisa conhecer os personagens previamente para se divertir.
Um dos amigos de Pozzi era o conde Robert de Montesquiou, um arquetípico dândi parisiense. Espécie de tataravô dos hipsters, “o dândi se empolga em ser mais espirituoso e mais bem-vestido, e ter mais bom gosto do que o resto da humanidade”, define Barnes. Homossexual, festeiro, ricaço e poeta bissexto, Montesquiou curtia o dolce far niente da vida social, com muito absinto durante os flertes e maledicências. Excêntrico e cativante, virou personagem de duas obras-primas: é o protagonista Jean Des Esseintes, de Às Avessas, de Joris-Karl Huysmans; e aparece, assim como Pozzi, no totêmico Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust. Isso, sim, é um influencer de respeito. Numa trama rocambolesca, Barnes conta como Montesquiou/Des Esseintes influenciou Oscar Wilde e seu Dorian Gray a ponto de ser citado como “prova” da homossexualidade do autor irlandês no julgamento por pederastia. Ser gay era crime no Reino Unido de então, mas liberado na França.
Se Paris foi o epicentro da Belle Époque, Londres foi sua filial mais famosa. O autor brinca com a rivalidade entre as duas cidades que nutrem uma admiração mútua, mas também se acotovelam há séculos. Os ingleses apreciam as mulheres, as artes e a libertinagem parisienses. Os franceses gostam da modernidade industrial, dos tecidos e da organização londrina — mas não de suas mulheres. “Uma inglesa é uma francesa que deu errado”, pontificou o pianista Erik Satie.
Inglês, mas galicista, Barnes sabe que o 7 a 1 para Paris é inevitável. “Pode parecer óbvio agora — óbvio, porque é verdade — que a Belle Époque foi um tempo de grande triunfo para a arte francesa”, reflete. “Um ano depois do trauma de 1870-71, Monet pintou Impressão, Nascer do Sol. Quando o período terminou, em 1914, Braque e Picasso tinham lançado as fundações e pintado as formas mais puras do cubismo. No meio-tempo: Manet, Pissarro, Cézanne, Renoir, Redon, Lautrec, Seurat, Matisse, Vuillard, Bonnard e o maior de todos eles, Degas. Ou: impressionismo, neoimpressionismo, simbolismo, fauvismo, cubismo. O que a Inglaterra tinha para comparar com isso?” Voilà, realmente. Nós sempre teremos Paris, ainda bem.
Publicado em VEJA de 1 de setembro de 2021, edição nº 2753
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