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O delicioso mergulho de Julian Barnes na Paris da Belle Époque

Em 'O Homem do Casaco Vermelho', escritor inglês recria capital francesa a partir da biografia de um cativante personagem

Por Diego Braga Norte Atualizado em 4 jun 2024, 13h02 - Publicado em 27 ago 2021, 06h00

A figura é imponente. Um homem elegante e “repugnantemente bonito” posa vestindo um robe de chambre vermelho. A cor e a exuberância do traje captam a atenção dos espectadores. Num segundo olhar, as mãos do modelo sobressaem, com dedos longos e delicados que parecem bailar em posições inusuais. Mãos de pianista? Não, mas de habilidades igualmente precisas: são as ferramentas de trabalho do ginecologista francês Samuel Pozzi (1846-1918). O retrato em que o pintor John Singer Sargent eterniza o pioneiro desse ramo da medicina é o ponto de partida do novo livro do inglês Julian Barnes.

O Homem do Casaco Vermelho

Aos 75 anos, multipremiado, autor de mais de uma dezena de romances, livros de memórias e ensaios, Barnes não precisa mais provar nada: já é um titã. Mas seu ensaio O Homem do Casaco Vermelho é uma pequena obra-­prima sobre a vida, a morte, costumes, belezas, tragédias e excessos da Belle Époque. Pozzi foi um dos protagonistas desse período breve, mas de imensa efervescência cultural e científica, espremido entre a derrota da França na Guerra Franco-Prussiana (1870-71) e a vitória na I Guerra (1914-18). Filho de italianos, Pozzi valeu-se de sua inteligência, carisma (era “o” mister simpatia de sua época) e beleza para trilhar sua bem-sucedida carreira como médico, professor, senador, amante das mulheres e das artes.

O HOMEM DO CASACO VERMELHO, de Julian Barnes (tradução de Léa Viveiros de Castro; Rocco; 272 páginas; 79,90 reais e 39,90 em e-book) -
O HOMEM DO CASACO VERMELHO, de Julian Barnes (tradução de Léa Viveiros de Castro; Rocco; 272 páginas; 79,90 reais e 39,90 em e-book) – (./.)

Seu círculo de amizades e pacientes incluía nomes como Mallarmé, Oscar Wilde, Henry James, André Gide, Victor Hugo, Marcel Proust, Anatole France, Rodin, Monet, Renoir, Degas, entre muitos outros, e boa parte da realeza europeia. Ele também tinha, lembra Barnes, “a reputação de ser um ‘sedutor incorrigível’, um médico que dormia com suas pacientes”. Casou-se com Therese Loth-Cazalis — que, quando “jovem e muito rica, era consequentemente ‘linda’” —, mas manteve várias amantes, de cantoras de ópera e nobres até um longo affair com a atriz bissexual e ninfomaníaca Sarah Bernhardt.

Box – Em Busca do Tempo Perdido

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Se fosse um diagrama, o livro teria o formato de uma constelação, com Pozzi como estrela ao centro — como aquelas cortiças com fotos e alfinetes de filmes policiais. A partir das muitas conexões do médico, Barnes faz um panorama da Belle Époque e tece comentários sobre sua importância para o mundo. O autor não humilha os leitores com seu vastíssimo conhecimento histórico e literário, mas sabe usar seu arsenal para iluminar os personagens e o período. Com sua prosa irônica e sem rodeios, somos apresentados em O Homem do Casaco Vermelho às fofocas e aos fatos mais importantes da época. A leitura é tão prazerosa e fácil quanto assistir a uma boa sitcom — daquelas em que ninguém precisa conhecer os personagens previamente para se divertir.

O Retrato de Dorian Gray

Um dos amigos de Pozzi era o conde Robert de Montesquiou, um arquetípico dândi parisiense. Espécie de tataravô dos hipsters, “o dândi se empolga em ser mais espirituoso e mais bem-vestido, e ter mais bom gosto do que o resto da humanidade”, define Barnes. Homossexual, festeiro, ricaço e poeta bissexto, Montesquiou curtia o dolce far niente da vida social, com muito absinto durante os flertes e maledicências. Excêntrico e cativante, virou personagem de duas obras-primas: é o protagonista Jean Des Esseintes, de Às Avessas, de Joris-Karl Huysmans; e aparece, assim como Pozzi, no totêmico Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust. Isso, sim, é um influencer de respeito. Numa trama rocambolesca, Barnes conta como Montesquiou/Des Esseintes influenciou Oscar Wilde e seu Dorian Gray a ponto de ser citado como “prova” da homossexualidade do autor irlandês no julgamento por pederastia. Ser gay era crime no Reino Unido de então, mas liberado na França.

SEDUTOR INCORRIGÍVEL - O célebre retrato de Pozzi: “Um médico que dormia com suas pacientes” -
SEDUTOR INCORRIGÍVEL - O célebre retrato de Pozzi: “Um médico que dormia com suas pacientes” – (Heritage Images/Getty Images)

Se Paris foi o epicentro da Belle Époque, Londres foi sua filial mais famosa. O autor brinca com a rivalidade entre as duas cidades que nutrem uma admiração mútua, mas também se acotovelam há séculos. Os ingleses apreciam as mulheres, as artes e a libertinagem parisienses. Os franceses gostam da modernidade industrial, dos tecidos e da organização londrina — mas não de suas mulheres. “Uma inglesa é uma francesa que deu errado”, pontificou o pianista Erik Satie.

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Inglês, mas galicista, Barnes sabe que o 7 a 1 para Paris é inevitável. “Pode parecer óbvio agora — óbvio, porque é verdade — que a Belle Époque foi um tempo de grande triunfo para a arte francesa”, reflete. “Um ano depois do trauma de 1870-71, Monet pintou Impressão, Nascer do Sol. Quando o período terminou, em 1914, Braque e Picasso tinham lançado as fundações e pintado as formas mais puras do cubismo. No meio-tempo: Manet, Pissarro, Cézanne, Renoir, Redon, Lautrec, Seurat, Matisse, Vuillard, Bonnard e o maior de todos eles, Degas. Ou: impressionismo, neoimpressionismo, simbolismo, fauvismo, cubismo. O que a Inglaterra tinha para comparar com isso?” Voilà, realmente. Nós sempre teremos Paris, ainda bem.

Publicado em VEJA de 1 de setembro de 2021, edição nº 2753

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