O mundo se acostumou sem beijos e abraços – e será assim por um bom tempo
Com o nariz torcido embaixo da máscara, nos conformamos com a proibição e criamos novos hábitos
A ciência comprova que o contato físico é indispensável para separar e identificar as relações humanas: assim que uma pele encosta na outra, o cérebro recebe um sinal para analisar o contexto da situação e produzir sentimentos de afeto, tristeza ou medo. “O toque executado com o objetivo de oferecer apoio ou consolo gera aumento da liberação de ocitocina, que é importante na formação de vínculo e apego”, diz o neurocientista Paulo Boggio, coordenador do Laboratório de Neurociência Cognitiva e Social da Universidade Mackenzie. As pesquisas também revelam que receber um abraço reduz o nível de cortisona e atenua situações de estresse. Há ainda estudos que mostram que quem abraça bastante corre menos risco de pegar infecções — o que não deixa de ser irônico em uma pandemia —, porque as manifestações de afeto baixam os níveis de tensão que enfraquecem o sistema imunológico. Abraços, beijos e contatos íntimos fazem parte da própria essência humana, mas eles estão, pelo menos por ora, suspensos pela onipresença da Covid-19. Como será quando o vírus passar?
A ausência de carinhos caiu como um raio sobre gente que nem sabia que sentia falta deles. Seja porque a cultura brasileira é calorosa, seja porque as conexões cerebrais exigem, os especialistas têm certeza de que, ao contrário do home office e do delivery — atividades que, sim, vieram para ficar, mas que de alguma maneira esfriam as relações humanas —, a interdição dos contatos de primeiro grau vai cair ladeira abaixo assim que o novo coronavírus deixar de ameaçar a vida das pessoas. “Uma pandemia não será suficiente para mudar a cultura brasileira”, diz Stella Schrijnemaekers, socióloga e antropóloga da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (Fesp-SP). De fato, mudanças profundas em padrões de comportamento podem levar uma geração inteira para se firmarem, mas é pouco provável que, em 2021, os abraços apertados estejam de volta à rotina. Por um tempo, e só por um tempo, as pessoas ainda estarão temerosas de contaminar seus entes queridos, e talvez ainda vão preferir praticar a proximidade com algum zelo.
Pouca coisa permaneceu igual no cotidiano desde que uma microscópica bolinha de proteína começou a pular de um organismo para outro e obrigou o mundo todo a se trancar em casa para fugir dela. Como se não bastasse a poda sumária do ato de sorrir, hoje escondido atrás da máscara, as manifestações de afeto também foram deletadas pela ameaça do vírus, para profundo pesar do caloroso povo latino. Até agora, com as restrições mais relaxadas, continua valendo o metro de distância entre indivíduos que não pertencem ao mesmo círculo íntimo. “Ainda não conhecemos tudo sobre a Covid-19. Por isso, as recomendações permanecem iguais às do início da pandemia: evitar tocar e ficar no mesmo ambiente com outras pessoas por muito tempo”, reitera o infectologista José Angelo Lindoso, da Universidade de São Paulo (USP).
A triste verdade é que não há como impedir que as gotículas orais e os contatos de superfícies pelos quais o vírus viaja contagiem quem se beija, se abraça ou executa um aperto de mão. Nos grupos de menor risco, já se permite um insatisfatório abraço rápido, de máscara, olhando um para cada lado. “Mas os mais suscetíveis, especialmente os idosos, ainda precisam evitar qualquer contato próximo com familiares que estejam saindo de casa”, adverte Lindoso. E dá-lhe senhoras e crianças trocando afetos enroladas em metros de plástico, como se estivesse uma dentro e outra fora do boxe do banheiro, e adultos encostando cotovelos — sem falar no “abraço de costas”, que requer boa dose de contorcionismo. “O não tocar se tornou uma demonstração de cuidado e cooperação”, diz o neurocientista Paulo Boggio.
Diferente de outras culturas, em que camisetas com a frase Not a Hugger (não gosto de abraço) fazem enorme sucesso, encostar pele na pele é uma necessidade entre os latinos. “O que em outras culturas pode ser visto como deselegante é algo essencial para os brasileiros”, afirma a socióloga Stella Schrijnemaekers. Ou seja: a imagem do futuro é de abraços e beijinhos sem fim. É só ter paciência.
Publicado em VEJA de 13 de janeiro de 2021, edição nº 2720