O novo tom das marchinhas de Carnaval
Aos 84 anos, compositor de 'Cabeleira do Zezé' lançou neste mês uma marchinha em homenagem à comunidade LGBTQIA+
Ainda antes da pandemia, uma discussão acalorada atingia o Carnaval: até que ponto a folia deveria se render ao figurino da correção política? Marchinhas clássicas dos anos 1960 já haviam caído na malha fina e estavam banidas do repertório de blocos carnavalescos do Rio e São Paulo, como O Teu Cabelo Não Nega (Lamartine Babo) e Ai Que Saudades da Amélia (Ataulfo Alves e Mario Lago), por serem consideradas machistas, racistas ou homofóbicas. É grita que se aplica, claro, a três hits inescapáveis do compositor carioca João Roberto Kelly: Mulata Bossa Nova, Maria Sapatão e Cabeleira do Zezé. Agora, aos 84 anos, ele se curva à pressão irresistível dos novos tempos: lançou neste mês uma marchinha em homenagem à comunidade LGBTQIA+, feita em parceria com o produtor Lúcio Mariano e gravada pelo cantor Carlinhos Madame. Segundo o autor, a letra de Eu Sou Gay celebra os grandes responsáveis pela folia. “Eu sou gay / O mundo é meu / Você não é? / Azar o seu”, diz a canção. “Eu quis enaltecer aqueles que considero os grandes artesãos do Carnaval. Sem eles, não haveria festa”, afirma Kelly.
Para além da homenagem, ele reconhece que a nova composição é uma resposta a quem o ataca por ter composto no passado letras politicamente incorretas. Mas, ainda assim, minimiza as críticas. “Acho essa discussão inútil. O importante é pular o Carnaval com músicas próprias da folia. Não dá para festejar ouvindo Samba de Uma Nota Só”, diz, alfinetando uma pérola da bossa nova. “O politicamente correto atrapalha muito. O Carnaval é crítica, gozação e brincadeira, sempre feitas de modo sadio”, completa.
Kelly lembra que Cabeleira do Zezé foi composta em 1964 para o garçom José Antonio, o Zezé, um rapaz cabeludo e cheio de marra que trabalhava no Bar São Jorge, do Leme, no Rio. “É uma crítica aos transviados (vadios) da época. Não quer dizer viado”, diz. “Minha música não tem a palavra ‘bicha’, que os foliões cantam após ‘será que ele é / será que ele é’. Não faço música para ofender ninguém”, defende-se. Já Maria Sapatão foi uma encomenda de Chacrinha, que assina como coautor. “A letra diz que a sapatão está na moda e o mundo aplaudiu. Não há o que criticar”, diz. A guerra das marchinhas vai pegar fogo.
Publicado em VEJA de 22 de fevereiro de 2023, edição nº 2829