‘O Outro Lado do Paraíso’: Renato, Jekyll e Hyde e a farra das caricaturas
Médico é símbolo do poder de vingança da mocinha Clara, que transforma os rivais não apenas em derrotados, mas em uma redução jocosa de si mesmos
Tudo na vida tem um lado A e um lado B, já dizia o cartaz de Durval Discos (2002), filme de estreia da cineasta Anna Muylaert que se bifurcava entre um início solar e um desfecho soturno. Ancorada na tese do eterno retorno, a novela O Outro Lado do Paraíso seguiu o caminho inverso. Depois de um começo pesado, com direito a abuso sexual, violência doméstica, assassinato, traição e mães apartadas à força dos filhos, a novela de Walcyr Carrasco – muito por ordem da direção da Globo, é verdade, que temia a fuga da audiência – retornou engraçadinha para a segunda fase. Engraçadinha, aliás, é apelido. O folhetim chutou sem pudor o bom gosto e transformou a maior parte de suas tramas em comédia pastelão, da qual o médico Renato (Rafael Cardoso), convertido em uma réplica grotesca de Jekyll e Hyde, é o maior símbolo – ou o pior exemplo.
A segunda etapa da trama se iniciou com o retorno glamouroso de Clara (Bianca Bin), que conseguiu escapar com vida do hospício de filme de terror onde a sogra megera, a psicopata Sophia (Marieta Severo), de olho nas terras recheadas de esmeraldas da família da mocinha, a internou por dez anos, enquanto fingia chorar sua morte em público. Clara voltou rica, chique e decidida a se vingar não apenas de Sophia, mas de cada um que ajudou a socialite – e, hoje se sabe, ex-quenga – a produzir a narrativa que justificou a sua internação.
A vingança seguiu um roteiro. Clara derrubou um por um os rivais e cada um que caía era transformado não só em um personagem derrotado, mas em uma tosca caricatura de si mesmo.
Primeiro, foi o psiquiatra Samuel (Eriberto Leão),
que passou as drogas usadas por Sophia para dopar Clara e deixar a mocinha chapadona, amalucada e fácil de manipular. Ele ainda deu um texto para Clara copiar e assim forjar um bilhete de despedida, que justificasse a sua saída de cena. E fez o laudo médico recomendando a internação na tal clínica do penhasco. A mocinha descobriu que Samuel era gay e levava uma vida de fachada ao lado de Suzy (Ellen Roche), porque tinha medo de assumir sua sexualidade e perder prestígio no hospital. E o arrancou do armário, dando início a cenas patéticas, no nível Zorra Total, entre ele, Suzy, seu verdadeiro amor, Cido (Rafael Zulu), e a mãe de quem não larga, Adnéia (Ana Lúcia Torres). Fazer piada rasa com sexualidade é coisa antiquada. Primeira torta na cara da audiência.
Em seguida, foi a vez do delegado pedófilo Vinicius (Flavio Tolezani),
que engavetou todas as denúncias de Clara contra o marido agressivo e colaborou para retratá-la como louca na farsa armada por Sophia para conduzir a nora ao penhasco. Na segunda fase, em um episódio decalcado de Scooby-Doo, Vinicius admitiu toda a sua culpa diante de um tribunal lotado e ainda se declarou à principal vítima, a enteada de quem abusou quando não tinha nem 10 anos. O ridículo, aqui, estava na inverossimilhança da cena, em que o delegado arrancou de vontade própria o disfarce social que usava, condenou a si mesmo de livre e espontânea vontade, já que não havia provas materiais de um crime cometido muitos anos antes, e assumiu a face plena do mal, como um vilão de conto de fadas. Ou de desenho animado.
E o que dizer do juiz Gustavo (Luís Mello), e sua mulher e cúmplice Nádia (Eliane Giardini),
que viveram décadas na fartura graças à propina que recebiam pelos casos que Gustavo julgava com interpretações muito peculiares, para beneficiar seus aliados – como quando passou a guarda do filho de Clara, Tomaz, para as mãos de Sophia, que se valeu do fato para explorar as terras de esmeraldas. A mocinha investigou Gustavo e tomou conhecimento de que o juiz era o sócio oculto do bordel Love Chic – vender o próprio corpo é permitido por lei, mas explorar o corpo dos outros, não –, onde mantinha um caso com a sócia, Leandra (Mayana Neiva). Levou a racista Nádia a pegar o marido no flagra, o que resultou em divórcio, além de exoneração, para o corrupto. Capítulos depois, os dois, divorciados, haviam se transformado em amantes um do outro, com as mais ingênuas (ou bizarras) fantasias sexuais. Sequências dignas de A Praça É Nossa, coroadas pela conversão da racista, que, depois de ter um neto negro, se transformou de maneira absurda na defensora da comunhão universal das raças.
Mas o caso mais dramático, para não dizer risível, é o da metamorfose de Renato.
No início da novela, Renato parecia um membro dos Mais Médicos, desapegado dos valores e padrões materiais e urbanos, barba comprida como a de um galã de humanas, roupas simples, sorriso constante no rosto e um consultório em Pedra Santa, pequena comunidade onde atendia pacientes desfavorecidos. Bastou Clara esfregar na cara que ele havia tentado matá-la ao enfiá-la em um caixão que (ele sabia) o hospício atiraria penhasco abaixo, e que sempre esteve de olho nas esmeraldas da família, já que havia sido sócio de seu pai, morto em uma explosão no primeiro capítulo, para Renato sofrer… um banho de loja. Além de admitir tudo, e ainda acrescentar que matou Beatriz (Nathalia Timberg), avó do advogado Patrick (Thiago Fragoso), Renato deu um jeito de casar com a neta que roubou a mesma Beatriz, Fabiana (Fernanda Rodrigues), cortar barba e cabelo, renovar o guarda-roupa e voltar, cínico ao lado da loira, para tentar tirar tudo de Clara e de Tomaz. Foi um baque veloz, forte e direto de Dr. Jekyll para Mister Hyde – ou o médico e o monstro, duas faces de um mesmo personagem, que se transformava ao beber uma poção produzida em laboratório.
Quem se salva nessa leva de reducionismos, até aqui, é Sophia,
e muito graças ao talento de Marieta Severo. Nem a boca torta que um AVC (acidente vascular cerebral) impingiu à personagem na última semana, quando se viu ameaçada por Clara no tribunal, onde responde por quatro mortes, tem feito a serial killer já apelidada pela audiência de “mãos de tesoura” parecer burlesca. Ela segue sendo a força motriz da novela, e deve ser assim até o capítulo final.
De resto, porém, é uma pena, mas O Outro lado do Paraíso é uma farra de caricaturas.