‘O Rei Leão’: entre o realismo e a ficção
Todo feito em computação gráfica, filme institui um novo marco técnico e um paradoxo: podem animais assim tão perfeitos convencer como 'gente'?
Palavras e atos não estão sujeitos a propriedade, mas, se estivessem, Walt Disney teria tido bons argumentos para reivindicar como seu o vocábulo “antropomorfização”, que o dicionário Houaiss define como a atribuição de características humanas àquilo que não o é. Disney fundou seu império sobre um ratinho de calçolas e sapatos que, em sua primeira aparição (no curta-metragem Steamboat Willie, de 1928), pilotava uma barca a vapor, levava bronca do capitão — um gato de maus bofes — e adorava acionar os apitos. No estúdio que nasceu do sucesso de Mickey Mouse, dar feições e expressões humanas aos animais ou objetos foi sempre a norma: dos bichinhos que rodeiam Branca de Neve no longa-metragem pioneiro de 1937 à agitada metrópole animal de Zootopia, de 2016 (e passando pelo candelabro Lumière de A Bela e a Fera), tudo no mundo da Disney sempre se mexeu, pensou, falou e agiu — não por obra de feitiçaria ou desvirtuamento, como nos contos de fadas, mas porque Disney tornou essa a ordem natural da animação.
Tão natural que, em 1994, o estúdio ambientou na savana, sem um único ser humano em cena, uma versão do Hamlet de William Shakespeare: a história de Simba, o leãozinho afastado de seu reino pelas tramoias do seu tio Scar, é não apenas o desenho de maior sucesso da Disney (em valores corrigidos, ultrapassa com folga Frozen), como também um auge artístico da antropomorfização: caracterizadas de maneira vívida e convincente, a inocência de Simba, a venalidade de Scar e a alegria do suricato Timão e do javali Pumba marcaram fundo uma geração. Agora, no novo O Rei Leão (The Lion King, Estados Unidos, 2019), que está em cartaz no país, a verossimilhança é acentuada ao ponto do absoluto — acentuada em demasia, talvez, já que a fidelidade fotográfica acaba por tornar menos convincente aquilo que, 25 anos atrás, era perfeitamente crível. Resumindo: é claro que bichos de desenho animado falam — mas é bem menos claro que animais indistinguíveis daqueles que se veem em um documentário de natureza da BBC também o façam.
Elaborado integralmente em computação gráfica com um perfeccionismo que assombra, este O Rei Leão mira o mesmo equilíbrio fino que o diretor Jon Favreau já buscara três anos atrás em Mogli, o Menino Lobo — um ponto ideal entre o hiper-realismo e a fantasia. Trata-se de uma linha tênue, e não são poucas as vezes em que Favreau e sua competentíssima equipe vacilam sobre ela: se o Simba filhote imediatamente ganha o coração da plateia e Pumba deleita com a voz de Seth Rogen e é um acerto de cabo a rabo (ou do focinho ao rabo, neste caso), por outro lado o Simba adulto e a jovem leoa Nala falham em conquistar com a mesma facilidade. Também a malevolência de Scar e a ganância das hienas impressionam menos do que no original: sem o recurso de brincar à vontade com as expressões dos personagens — limitadas justamente pelo fotorrealismo — e dependente em excesso do êxito de cada ator que dá voz a eles, O Rei Leão se alterna entre aquela deliciosa suspensão de julgamento em que tudo parece certo e natural ao espectador e aqueles momentos em que este é abruptamente lembrado do artifício do que está vendo.
Pode-se argumentar que há aí um fator geracional em jogo: da mesma forma que as plateias do passado foram sendo habituadas à antropomorfização dos desenhos até aceitá-la como regra, esta nova geração, pelo que se pode aferir, não vê nada de estranho no casamento entre realismo e fantasia de O Rei Leão e de Mogli (um sucesso indiscutível de bilheteria, com renda de 967 milhões de dólares). Mas, para quem guarda na lembrança a imagem dos olhos arregalados do pequeno Simba ao ser apresentado à imensidão do reino que o espera, é difícil não ponderar que o leãozinho agora é perfeito demais, como leão, para ser perfeitamente humano.
Publicado em VEJA de 24 de julho de 2019, edição nº 2644