Em um ensaio célebre sobre a arte moderna, o filósofo alemão Walter Benjamin (1892-1940) produziu uma das mais profundas reflexões sobre a relação entre os seres humanos e a história. Escrevendo a respeito de um desenho do suíço Paul Klee que mostra um anjo mirando o espectador com olhar desolado, Benjamin mostra que, embora o homem tente enxergar virtude e coerência no passado, é aquele olhar de assombro do anjo que melhor traduz nossa impotência diante da cacofonia dos fatos que moldam a história. Pode-se detectar o mal-estar de que fala o filósofo num debate que causa furor nos dias de hoje: o assombro de muitos ao verificar que autores de clássicos da literatura, pintores e outros ídolos do passado infelizmente mancharam suas obras essenciais com uma marca indecorosa — a propagação de ideias e preconceitos incompatíveis com a bússola moral da atualidade.
Racismo, machismo, xenofobia, homofobia, gordofobia: é cabeluda a lista de pecados de figuras que vão do pintor espanhol Pablo Picasso ao criador do agente James Bond, o escocês Ian Fleming. Encontrar nas grandes obras expressões e cenas ofensivas causa repulsa compreensível e um legítimo desejo de reparação — e é uma questão espinhosa para pais e professores preocupados com a formação das crianças. Mas o que fazer quando o passado assombra o presente: deve-se apagá-lo? É essa a saída radical proposta por um novo revisionismo cultural: reescrever o passado para que ele se adeque à consciência contemporânea.
As operações com o objetivo de passar a limpo o passado são mais explícitas na literatura, englobando de mestres como o americano Mark Twain aos romances policiais da inglesa Agatha Christie, das histórias infantis do brasileiro Monteiro Lobato e do britânico Roald Dahl, autor de clássicos como A Fantástica Fábrica de Chocolate e Matilda, até os escritos religiosos do francês Allan Kardec, o pai do espiritismo. Nessas obras, a lupa fiscalizadora expôs termos que ofendem negros, indígenas e gays, piadas humilhantes sobre obesidade e atitudes misóginas — em casos que vão do quase inofensivo ao horror indefensável (leia abaixo).
Um caso recente e emblemático é a operação para “sanitizar” a obra do criador do 007. Em suas aventuras, James Bond já entrou numa boate no Harlem, em Nova York, e fez uma tirada carregada de preconceito: comparou o público negro no local a “porcos na pocilga”. O trecho integra um dos sucessos de Ian Fleming (1908-1964), Viva e Deixe Morrer, de 1954 — e, não à toa, incomoda leitores ao equiparar pessoas negras aos suínos. Em abril, será lançada na Inglaterra uma reedição da obra que faz “retoques”: a analogia racista será substituída por uma menção à “tensão elétrica” do salão. Não será a única alteração na obra de Fleming: a celebração dos setenta anos do espião criado em 1953 virá acompanhada de relançamentos, por assim dizer, higienizados da série de livros.
A revisão ocorre hoje de forma mais radical na literatura, mas o mesmo princípio é aplicado em outras áreas culturais, com as devidas nuances. Na pintura, as revelações sobre o machismo tóxico de Picasso fizeram o museu que leva o nome do artista em Paris jogar a toalha: ao lado de suas obras, a instituição agora vai exibir trabalhos de feministas e mulheres negras, como contraponto. Na música, o anseio de não ferir suscetibilidades enseja uma forma de autocensura. Os Rolling Stones tiraram de seus shows o hit de 1971 Brown Sugar, que mistura referências sexuais à escravidão. Chico Buarque não entoa mais Com Açúcar, com Afeto, de 1967, sobre uma mulher submissa a um homem que a destrata. Nem os clássicos do cinema escapam: antes da exibição de …E o Vento Levou no streaming há um alerta para o retrato romantizado da escravidão, e a animação Peter Pan vem com mensagens sobre a visão estereotipada dos nativos americanos. Até o Príncipe Encantado da Branca de Neve está na berlinda: um movimento condena a cena do beijo não consentido no filme da Disney.
O gosto por passar a borracha no que incomoda é antigo e já mobilizou impérios, ditaduras e religiões. Eventos como a Revolução Cultural na China comunista dos anos 1960 resumem os horrores que, em casos extremos, surtos de reforma delirante do passado podem produzir. No entanto, é mais instrutivo para o presente constatar que algumas das tentativas de reinventar a memória vieram embaladas não pela sanha repressora, mas por boas intenções — que mais tarde a própria história demonstrou serem desastrosas.
O recato religioso produziu um dos maiores exemplos disso. No século XIX, os irmãos Thomas e Henrietta Bowdler criaram adaptações das peças de William Shakespeare mais “adequadas” à moral vigente. O suicídio de Ofélia em Hamlet foi vertido em afogamento acidental, e a prostituta Doll Tearsheet foi cortada de Henrique IV, Parte 2. Se aos olhos de hoje a edição é vexatória, a razão parecia nobre: os irmãos queriam permitir que todos, até mulheres — que tinham a educação e leitura controladas por homens —, tivessem acesso aos textos. Cunhou-se então o termo “bowdlerismo” para designar as tentativas de editores de supostamente proteger o leitor, para que nada venha a feri-lo ou chocá-lo.
Recentemente, o mercado editorial criou até um cargo para especialistas em caçar trechos problemáticos: são os “leitores sensíveis”, que fazem uma varredura antes de relançamentos de clássicos e filtram passagens polêmicas até em novos livros (leia abaixo). A superproteção do público atinge, sobretudo, a literatura infantil. De olho nisso, o grupo responsável pela obra do galês Roald Dahl (1916-1990), o autor de A Fantástica Fábrica de Chocolate, decidiu agir: uma releitura radical de seus livros enquadrou centenas de termos tidos como “sensíveis”. A limpeza ensejará uma série de relançamentos neste ano. O maior argumento é o de que a língua é um organismo vivo, em constante interação com a realidade — logo, passível de ser adaptada. Um exemplo é a palavra queer: o termo hoje abraçado pela comunidade gay já teve cunho pejorativo — e assim foi usado por Dahl. Na dúvida, será trocado num livro do autor por “estranho”.
Dahl foi famoso por abominar a ideia de que se mudasse uma vírgula em seus textos. Mas era exceção: um pretexto comum para liberar geral a revisão é que os próprios autores em foco não consideravam seus textos intocáveis. Monteiro Lobato reeditou sua obra na década de 40, deixando-a mais dinâmica. Fleming autorizou, em 1955, que a edição americana de Viva e Deixe Morrer limasse o termo racista nigger (crioulo), mudança que se repetirá nas novas edições. Foi baseado nesse precedente que o grupo Espíritas à Esquerda lançou em novembro um e-book gratuito com a versão “antirracista” de O Evangelho Segundo o Espiritismo (1864) — em abril, o mesmo tratamento será dado a O Livro dos Espíritos (1857). A obra de Kardec (1804-1869) entrou na mira do Ministério Público da Bahia após uma denúncia apontar 106 trechos racistas nos textos do educador francês. Kardec era adepto da frenologia, pseudociência que hierarquizava os humanos segundo falsos preceitos raciais. Um ajuste de conduta adicionou, desde 2007, notas de rodapé às edições. O novo projeto se baseia no mesmo modelo, mas destaca parágrafos novos antes do texto original problemático. “A constante evolução é parte dos ensinamentos de Kardec”, argumenta o professor Hadson do Nascimento, um dos editores do relançamento.
A fantástica fábrica de chocolate
Para além das boas intenções politicamente corretas, parte considerável das operações de limpeza moral tem mais uma razão concreta: salvar os lucros. Num cenário de intolerância crescente a preconceitos e escrutínio implacável do tribunal da internet, ações como cortes e substituições de frases e ideias, alertas educativos antes das obras e até autocensura são medidas desesperadas para não jogar artistas na fogueira do cancelamento — e assim minar os ganhos de editoras, gravadoras e herdeiros. Apagar os erros desses autores é como limpar a imagem do negócio da associação com marcas odiosas, como o racismo.
Não por acaso, a família de Fleming foi a primeira a sair em defesa de mudanças nos livros do 007. No Brasil, Cleo Monteiro Lobato, bisneta do autor do Sítio do Picapau Amarelo, coordena relançamentos com linguagem atual e mudanças pontuais na Tia Nastácia: a então empregada abandonou o avental, assumiu um look de inspiração africana e, agora, é amiga de infância da Dona Benta, e não sua subalterna. “Os exemplares anteriores continuam no mercado”, afirma Cleo. “Ter mais opções de leitura de uma obra não é censura, é justamente o oposto: torná-la mais democrática.”
Aos poucos, a onda caminha para um desejável meio-termo. A pesquisadora Marisa Lajolo conta que já ouviu vários relatos de crianças incomodadas nas salas de aula com a obra de Lobato. Ela, porém, é contra a mudança em textos originais: prefere o uso de notas explicativas. “Dar o contexto e discuti-lo é o caminho contra a censura”, diz. Diante do dilema cruel entre dar um basta ao preconceito e preservar o passado como ele é, essa é sem dúvida a opção mais equilibrada de que se dispõe até o momento. No Museu do Ipiranga, em São Paulo, optou-se por acompanhar o quadro Ciclo da Caça ao Índio, de Henrique Bernardelli, de um alerta sobre o genocídio de povos originários — em vez de simplesmente mudar seu título, como alguns aventavam. “O nome da obra já era agressivo antes e hoje é intolerável. Mas não podemos apagá-lo. Esse nome também é um documento”, explica o curador Paulo Garcez. “Quando revisitamos uma obra com os olhos de hoje, corremos o risco de apagar as contradições de seu tempo e o que de fato havia de problemático naquele contexto”, complementa o filósofo Filipe Campello. Analisar o passado e olhar para a frente é parte da evolução humana — e conhecer a história, mesmo que com todos os incômodos e horrores, é fundamental para não repetir seus erros.
Vigilantes da diversidade
Nos últimos anos, o cuidado com a representação da diversidade na literatura abriu espaço aos “leitores sensíveis”. Pertencentes em geral a uma determinada minoria, esses profissionais fazem uma revisão direcionada, indicando erros, preconceitos e incongruências. “É uma ferramenta que nos assegura de que o texto não está ofensivo”, diz Rafaella Machado, editora-executiva da Galera Record. As mudanças nos clássicos de Roald Dahl e Ian Fleming passaram por esse crivo, mas os leitores sensíveis se debruçam, na maioria das vezes, sobre novas obras. De origem indígena, a autora Mayra Sigwalt fez a análise do best-seller A Filha do Guardião do Fogo (Intrínseca), da americana de origem nativa Angeline Boulley. “Foram pequenos ajustes porque o livro já foi traduzido por uma pessoa indígena. Quando isso não acontece, geralmente há termos como índio e tribo”, aponta*. “Damos sugestões para adequar o texto à intenção do autor. Não é que não vá existir um personagem racista, é cuidar para que aquele que não foi imaginado como racista não fale algo ofensivo sem querer”, complementa Diana Passy, que revisou a série A Guerra da Papoula, de temática chinesa. Mulher negra, Lorrane Fortunato trabalha com questões raciais e destaca a importância da função para aprofundar histórias. “Às vezes, você percebe que o personagem é um branco pintado de preto, porque a vivência não é a de um negro”, explica ela, que atuou numa reedição de Clara dos Anjos, de Lima Barreto. Expert em saúde mental, a americana Ari Augustine cobra de 150 a 350 dólares pela leitura sensível de uma obra, e destaca que nada é imposto: “A decisão de aceitar ou não as sugestões é sempre do autor”. Ainda bem.
* Uma versão anterior desta matéria teve uma declaração da profissional Mayra Sigwalt ajustada na edição para limar repetições de texto. Na versão atual, a aspa da autora está literal como ela concedeu em entrevista.
Publicado em VEJA de 22 de março de 2023, edição nº 2833
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