Às quatro da tarde, parte do elenco do Teatro Oficina já se dividia entre os preparativos para o lançamento de A Glória e Seu Cortejo de Horrores, segundo romance da atriz Fernanda Torres, que escolheu o prédio reformado por Lina Bo Bardi no coração do Bexiga como palco de uma leitura dramática do livro, que tem um ator como protagonista e narrador. “Estou ansioso. Quero ver isso cheio de gente”, disse um sorridente e bigodudo Glauber Amaral, pernambucano de 27 anos que era um dos atores envolvidos na organização do evento. Mais tarde, no estrado ao lado da autora, do diretor José Celso Martinez Corrêa e dos atoresAntonio Fagundes, Paulo César Pereio, Maria Manoela e Sergio Mamberti, entre muitos outros de uma multidão de conhecidos e anônimos que cercaram o palquinho ao fim da leitura, em meio a aplausos, gritos contra Silvio Santos, flashes, palmeiras e bananeiras, ele faria uma declaração a Fernanda Montenegro. “Você mudou minha vida quando foi gravar Central do Brasil em Sertânia, minha cidade. É por isso que estou aqui hoje.” Fernandona beijaria a sua mão e por sua vez resumiria o evento em um depoimento emocionado. “Essa noite é histórica. Eu tenho 88 anos, percorri 70 de carreira para viver isso hoje e digo, mas sem tristeza, que essa noite nunca vai se repetir.”
A cena foi o ápice do evento, que logo de partida se transformou em ato de defesa das artes, do Teatro Oficina e do Parque do Bexiga, a praça cultural pública que a companhia teatral quer criar em volta do edifício, concluindo o projeto que Lina Bo Bardi morreu antes de finalizar – o Oficina reformado por Lina, a arquiteta que projetou o Masp e o Sesc Pompeia, foi inaugurado em 1993, um ano depois da morte da italiana. E, é claro, em ato contra o Homem do Baú, que é dono das terras em torno da sede da companhoa teatral, não quer cedê-las e planeja erguer ali três torres residenciais de mais de cem metros de altura cada uma.
Mas houve outros – muitos – momentos fortes. Como quando a atriz Vera Barreto Leite, 80, modelo que foi uma das preferidas de Coco Chanel, se aproximou do palco e foi reconhecida por Fernanda Montenegro. “Eu lembro de você menina, Vera, com 9 anos. Eu conheci os seus pais”, disse Fernandona, olhos molhados, em quem Vera tascou um beijo demorado na boca, bastante aplaudido. No fim dos anos 1950, quando era então um teatro espírita, Fernanda Montenegro varou madrugadas ensaiando no espaço que o Oficina adotaria em 1961. E conviveu com os diversos atores que movimentavam o Bexiga, bairro que é conhecido como o berço do teatro moderno brasileiro desde a fundação do TBC, em 1948.
O clima era de festa e de congregação. O palquinho onde se daria a leitura terminou abarrotado de atores porque, além dos escalados para interpretar passagens do livro de Fernanda Torres – sua mãe, Zé Celso e Fagundes – se somavam os amigos que chegavam, caso de Mamberti, Pereio e Maria Manoela, representante da cena teatral da Praça Roosevelt. O vereador Eduardo Suplicy, porta-voz do grupo junto ao prefeito de São Paulo, João Doria, chegou atrasado e se sentou na beirada do estrado, de onde depois despencaria no chão. “Rolou?”, perguntou bem-humorada Fernanda Torres. Suplicy não se abalou e seguiu tirando fotos com o celular, deitado na passarela do Oficina.
Já no fim da manifestação, o petista bradou a Silvio Santos, citando o filho Supla, ex-participante do reality shows Casa dos Artistas, do SBT. “Silvio Santos, você que conviveu com tantos artistas, como meu filho Supla, pense nesse teatro com carinho”, pediu ao microfone, antes de ser ovacionado.
Como se festa já não fosse, a noite ainda terminou em uma grande balada. As portinhas de topo arredondado ao fundo do salão permitiam a saída de quem queria fumar nas escadas azuis que dão para o terrenão de Silvio Santos. Ali, três seguranças de preto vigiavam para ver se ninguém se atrevia a pisar na terra. “Vão lá fora nas escadas ver o Parque do Bexiga”, incentivava Zé Celso, que pôs um caco no texto de Rei Lear lido por ele no evento – o trecho em que o bobo da corte fala nas “herdeiras” do rei virou “herdeiras de Silvio Santos”. Lear, em sua ganância de preservar o patrimônio para as filhas, é hoje, para Zé Celso, o próprio Homem do Baú.