“Sinceramente, eu perdi a vontade de viajar. E não foi por causa do medo de atentados ou guerras. Eu perdi a vontade de viajar, envergonhada com minha própria liberdade, da qual outros carecem.” A autora da frase é a escritora polonesa Olga Tokarczuk, uma viajante contumaz que faz dos deslocamentos e das descobertas que eles proporcionam uma das pedras de toque de suas histórias. Confinada na pandemia, a Nobel de Literatura de 2018 revisitou suas obras, conceitos e dogmas. Ela conta que durante o lockdown teve tempo para rever sua produção não fictícia, incluindo ensaios e palestras proferidas numa universidade polonesa. O resultado desse esforço é o seu mais recente livro: Escrever É Muito Perigoso.
Escrever é muito perigoso: Ensaios e conferências
No volume que reúne textos inéditos para o público brasileiro, Olga se revela não apenas uma escritora brilhante. Pensadora inquieta e poderosa, ela é capaz de conexões improváveis (ligando, por exemplo, o arqueólogo Indiana Jones à crise dos refugiados), diagnósticos psicossociais precisos (a autora é psicóloga de formação e tem profundo conhecimento de psicanálise) e frases desconcertantes. Olga expõe, sobretudo, dilemas éticos do cotidiano de que muita gente ao redor do planeta não se dá conta. “Será que se pode desfrutar férias em uma praia vedada à população local? Será que se pode recostar confortavelmente em um assento no avião sabendo que no caminho inverso há gente amontoada em contêineres?”, questiona.
Seus ensaios tocam esses dilemas de uma maneira inteligente, fazendo referências e reflexões sobre problemas atuais. Entre os temas contemplados estão a pandemia, o consumismo desenfreado, o vegetarianismo como opção moral, a ansiedade como doença global e, claro, o fazer literário. E, um aviso, não é imprescindível ter lido as obras ficcionais de Tokarczuk (Sobre os Ossos dos Mortos e Correntes já foram publicados no Brasil) para apreciar as pensatas sobre seu processo criativo e literatura.
Em ensaios breves, é possível vislumbrar parte da sabedoria da autora. Ela menciona referências bíblicas, conhecimentos históricos, filósofos clássicos, pensadores contemporâneos, autores poloneses desconhecidos do grande público e nomes consagrados como Virginia Woolf, J.M. Coetzee e Jorge Luis Borges. Um dos grandes méritos da escrita da Nobel reside em sua generosidade — pois, apesar da erudição, os textos são acessíveis, com metáforas e explicações de fácil compreensão. No posfácio da obra, a própria escritora admite que gosta de preparar textos para serem lidos em público, e os faz justamente pensando em impactar o maior número de pessoas possível.
A autora polonesa é precisa ao diagnosticar sintomas maléficos em nossa sociedade — mas humilde ao não apontar soluções. Tal postura é um mérito num mundo em que respostas fáceis para questões difíceis estão a um clique de distância. “Em vez de ouvirmos a harmonia do mundo, ouvimos uma cacofonia, um barulho insuportável em que tentamos desesperadamente escutar uma melodia, por mais silenciosa que seja”, diz Olga sobre a proliferação de informações (confiáveis ou não) disponíveis on-line.
Fazendo conexões entre as onipresentes fake news e a literatura, Olga constata que a atual disseminação e o consumo massivo de mentiras contribuem para o enfraquecimento da ficção. A seu ver, isso levou muitos leitores a desaprender como apreciar obras literárias. “É com demasiada frequência que deparo com uma pergunta cheia de desconfiança: ‘Isso que você escreveu é verdade?’ ”, aponta. A máxima já surrada de Friedrich Nietzsche — temos a arte para não morrermos de realidade — é precisa ao apontar a necessidade humana de transcender. A polonesa vai além: indica que a transcendência por vias artísticas só é possível tendo a realidade como premissa, não um mundo de mentiras e “fatos alternativos”. Não há arte que resista ao terraplanismo.
Publicado em VEJA de 12 de abril de 2023, edição nº 2836
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