Os 250 anos de Beethoven, o gênio furioso da música
O mundo celebra o aniversário do maior compositor de todos os tempos. Tão heroica e impetuosa quanto ele, sua arte é um legado imortal para a humanidade
Foi como se os deuses pagãos acordassem e decidissem sacudir a Europa inteira. Os revolucionários franceses se insurgiram contra o poder divino, cortaram a cabeça de seu rei, espalhando o medo pelas demais monarquias do continente e levando a guerra até elas, inclusive à Áustria, lar da dinastia Habsburgo. Viena, a capital austríaca, tremeu com os tambores da Revolução de 1789 e viria a estremecer ainda mais com os canhões de Napoleão Bonaparte, o republicano que se tornaria o maior déspota daquela geração. No entanto, a cidade conheceu a verdadeira fúria da natureza humana, aquela que realmente importa, quando um germânico de tez escura, longa cabeleira e gestos grosseiros passou por seus portões sem disparar um único tiro. Em dezembro, o mundo celebra 250 anos do nascimento desse homem. Ele é Ludwig van Beethoven.
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Alguns musicólogos dizem que, se existisse um cetro da música, ele deveria ser repartido entre Bach, Mozart e Beethoven. Outros só concordam com essa repartição se a coroa for apenas para Beethoven. Bach já havia morrido quando ele nasceu na cidade de Bonn em 17 de dezembro de 1770. A data exata, assim como toda a vida do compositor, é cercada de disputas, mas esse foi o dia registrado. Ele comemorava seu aniversário, só que desconhecia a própria idade, pois seu pai, Johann — abusivo, alcoólatra e músico medíocre —, mentia dizendo que o filho tinha dois anos a menos. Johann ouvira que o pai de Mozart ganhava dinheiro exibindo o filho prodígio e queria fazer o mesmo com seu Ludwig — então espalhava que ele tinha 6 anos, quando já tinha 8. Se o pai era um patife, que acordava o filho de madrugada para tocar, pelo menos teve a sensatez de entregar os estudos do rapaz a mestres melhores.
Beethoven teve aulas com professores renomados, incluindo Joseph Haydn, figura importante também na vida de Mozart. Mas, quando se estabeleceu em Viena, já com a Revolução Francesa em andamento, o gênio rompeu com a estética de todos para trilhar o próprio caminho. Troncudo, baixo, com o rosto marcado pela varíola que o acometeu na infância, Beethoven possuía uma fúria dentro de si, criativa e emocional, que mexia com todos à sua volta. Não à toa ele é o músico adorado por Alex, o personagem do filme Laranja Mecânica, que comete crimes ao som das sinfonias do gênio alemão. Não que Beethoven tivesse propensão para a violência, mas seu desprezo pela nobreza e pela Igreja, das quais na verdade dependia para viver, abalava Viena tanto quanto sua magnífica obra, cujas sonatas e sinfonias são hoje pilares da cultura universal.
O maestro Paavo Järvi, da Filarmônica de Câmara de Bremen (confira o artigo especial para VEJA sobre o compositor na pág. 90), lembra que Beethoven rebatizou de Eroica sua Terceira Sinfonia, que deveria ter se chamado Bonaparte, antes de apresentá-la em 1804. Seu herói, em quem ele depositava a esperança do fim do absolutismo, havia se autoproclamado imperador naquele ano. A Eroica seria um dos destaques da programação de 250º aniversário se não fosse pela pandemia, que dissolveu o calendário das melhores orquestras do mundo, inclusive o da Sinfônica do Estado de São Paulo, que interrompeu suas apresentações em março. A Osesp divulgou que oito das nove sinfonias de Beethoven serão apresentadas em janeiro e fevereiro de 2021, sob a batuta de seu novo regente, o suíço Thierry Fischer. Ficou de fora apenas a Nona Sinfonia, já executada recentemente pela antecessora dele, a maestrina americana Marin Alsop.
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A Nona Sinfonia, a primeira da história a utilizar coro, foi concluída em 1824, quando Beethoven já não ouvia nada, a não ser as reverberações do piano. A surdez começou a dar sinais quando ele tinha menos de 30 anos. Apesar de não existir prova irrefutável, acredita-se que a causa da perda de audição tenha sido a sífilis, contraída nos bordéis de Viena. A mesma doença talvez seja a explicação para Beethoven nunca ter se casado. Teve inúmeras paixões platônicas por mulheres da nobreza que nunca poderia desposar, uma vez que era plebeu, e então concentrou toda a sua fúria romântica em sonatas que violinistas menos experientes enfrentam até hoje dificuldade para tocar.
Tão importante quanto a habilidade para executar suas obras é ter talento para conduzi-las: não é fácil marcar o tempo apropriado, com uma centena de músicos à frente e uma plateia cinco vezes maior às costas. Fischer, maestro da Osesp com mais de trinta anos de experiência, falou a VEJA sobre o aniversariante: “Beethoven é como um romance de Proust. Toda vez que você faz uma releitura, descobre novos símbolos, cores, conceitos e territórios não explorados”. Um dos grandes regentes do século XX, o austríaco Herbert von Karajan, admirava tanto Beethoven que só endossou o CD como a mídia dominante para as gravações da Filarmônica de Berlim, nos anos 80, quando lhe afiançaram que a Nona Sinfonia, cuja duração é de mais de setenta minutos, caberia na íntegra em um único disco (ao contrário do que ocorre nos LPs).
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Depois de dois séculos e meio, outro mistério ainda cerca a vida do gênio irascível. Entre os documentos que chegaram à posteridade, havia uma carta que ele escreveu à “amada imortal”. A correspondência foi devolvida ou ele decidiu não enviá-la. Um filme de 1994 suscita a possibilidade de ser a esposa de seu irmão, cujo filho ele lutou pela guarda — hipótese descartada por biógrafos. Seria mais um devaneio sobre uma mulher idealizada que ele, no fundo, sabia que jamais poderia conquistar? A resposta fica no ar, mas um fato é indiscutível: de seu nascimento à sua morte, em 26 de março de 1827, o único amor imortal de Beethoven foi a música.
Publicado em VEJA de 16 de dezembro de 2020, edição nº 2717
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