Os fantasmas de Hitler e Stálin ainda rondam o mundo, diz novo livro
Obra traz lições para combater os ditadores de qualquer tempo
Ao saber do sucesso na negociação do célebre pacto de não agressão entre União Soviética e Alemanha às vésperas da II Guerra, em 1939, Josef Stálin manifestou preocupação com os termos festivos do acerto com os nazistas. Após tanta hostilidade entre os dois países, calculava ele, não pegaria bem posarem de amigos. Stálin insinuou ao ministro das Relações Exteriores de Adolf Hitler, Joachim von Ribbentrop, que a euforia dificultava o trabalho dos propagandistas dos dois ditadores — que passaram anos difamando um ao outro. De fato, soviéticos e nazistas se viam como inimigos, mas seus respectivos líderes achavam que isso era menos importante do que seus objetivos políticos e ideológicos. Por isso, Stálin manifestava sua preocupação em como explicar o acordo com os nazistas, mas também sabia que, a qualquer hora, o pacto entre eles poderia ser desfeito — como acabou acontecendo. Em seu incomum receio relativo à opinião pública, Stálin teve seu pedido atendido, e logo os termos do acordo foram refeitos com maior sobriedade. Após a mudança, um telefonema entre Hitler e o ditador soviético autorizou o brinde entre representantes dos dois governos que marcaram o século XX por seus horrores e brutalidade.
Hitler e Stalin: Os tiranos e a Segunda Guerra Mundial
É esse tipo de comportamento cínico e atroz que caracteriza os autocratas, como demonstram as histórias reveladoras de Hitler e Stálin: os Tiranos e a Segunda Guerra Mundial. O alentado estudo do britânico Laurence Rees retrata como os dois maiores ditadores do século XX tomaram suas decisões e provocaram algumas das mais sangrentas tragédias da história contemporânea. Rees não deixa de apontar que o sistemático assassinato de judeus pelos nazistas foi incomparável até para os padrões stalinistas, mas prova, ao longo da narrativa, que os símbolos maiores do totalitarismo eram como duas faces da mesma moeda. Apesar das diferenças ideológicas, eles ora se aproximavam, ora se distanciavam — e o autor examina esses movimentos furtivos à luz do contexto histórico e das ações dos dois líderes relatadas em minúcias escabrosas por sobreviventes e pessoas que trabalharam para os dois.
O Essencial da Segunda Guerra Mundial
Começar o livro com o Pacto Ribbentrop-Molotov de 1939 é um acerto, na medida em que o momento desnuda o caráter e as maquinações de Hitler e Stálin. Nele, Alemanha e União Soviética definiram não só um acordo de não agressão, mas como dominariam alguns países e povos, especialmente a Polônia. No lado soviético, havia a desconfiança de que a Inglaterra agia para permitir o avanço nazista para o Leste, em direção a um conflito com a União Soviética. Para Hitler, um acordo com os comunistas possibilitaria que ele voltasse suas forças a um acerto de contas com o Ocidente europeu, que humilhara a Alemanha ao fim da I Guerra, em 1918. Mas, para além da geopolítica, o tratado de 1939 revelava um fundamento do nazismo e do stalinismo: o desprezo por povos considerados “fracos”. Sentimento que, vinculado às experiências particulares dos ditadores (ambos tinham em comum, por exemplo, o ódio à Polônia), resultou em milhões de mortos em uma escala de atrocidade que torna os relatos obtidos por Rees chocantes mesmo após tanto tempo. Talvez porque a mecânica prática da opressão criada por Hitler e Stálin, amparada no direito que imaginavam ter sobre povos “subalternos”, esteja entre as bases da ação de outros ditadores. Inclusive do presente: em muitos trechos do livro, é inevitável vir à mente o russo Vladimir Putin, ironicamente comparado tanto a Hitler quanto a Stálin em protestos contra a recente invasão na Ucrânia pela Rússia.
As semelhanças entre os dois também apareciam ao se apresentarem em público. De Valentin Berezhkov, intérprete que trabalhava nas reuniões entre soviéticos e alemães, veio o testemunho de que ambos recebiam a mesma idolatria de famílias ansiosas para que seus filhos recebessem os afagos dos líderes, em meio aos retratos e manifestações que enalteciam os respectivos regimes. Durante um comício de Hitler, o jovem intérprete concluiu que “Stálin era assim”.
Os dois comungavam a disposição em matar as pessoas que se interpunham em seus caminhos, mas nuances importantes distinguiam suas personalidades. Enquanto Hitler era mais altivo e arrogante, Stálin revelava-se desconfiado e introspectivo. O ditador da Alemanha, vislumbrando a criação de um império, reconhecia a importância de seus assessores e da estrutura institucional. Já o soviético, preocupado com seu poder interno, não hesitava em ser dúbio e em perseguir quem discordasse de suas ordens ou lhe despertasse desconfiança.
Stálin: Nova biografia de um ditador
O livro tem o mérito de desvendar os mecanismos da mente de dois dos maiores facínoras da história. E expor, enfim, como os opostos se atraíam: Hitler e Stálin nutriam certa admiração mútua, principalmente por atitudes relacionadas à frieza no uso da violência e à capacidade de superar diferenças com os desafetos em nome de vantagens imediatas ou de vitórias futuras. Em tempos de guerra da Rússia de Putin contra a Ucrânia, entender que ditadores agem a seu modo, e pensando no poder acima das convicções, nos ajuda a lembrar dos riscos de ser condescendentes com eles. Todos os dias servem para condená-los.
Publicado em VEJA de 6 de abril de 2022, edição nº 2783
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