Há três anos, as declarações do guitarrista Eric Clapton e do baixista Roger Waters mostravam que ambos estavam politicamente desafinados. Nos tempos da covid-19, Clapton abraçou com enorme fervor as teses furadas da extrema direita: criticou o distanciamento social e deu entrevistas duvidando da eficácia da vacina. Foi chamado de reacionário para baixo na fogueira das redes. Já o ex-baixista do Pink Floyd sempre foi conhecido por fazer coro a pontos de vista de uma esquerda psicodélica e incoerente, apoiando o ditador da Venezuela Nicolás Maduro e o autocrata russo Vladimir Putin. Waters é de longa data crítico da política de Israel com relação à Palestina e aumentou o volume durante o atual conflito na Faixa de Gaza.
A surpresa é que Clapton, o negacionista, passou a concordar nos últimos tempos com o colega. Recentemente, por exemplo, fez um show com uma guitarra pintada com a bandeira da Palestina em Londres. Sobre as ações terroristas do Hamas, no entanto, até agora silêncio absoluto do astro. Muitos fãs reclamaram, argumentando que não era possível o ídolo comportar-se dessa forma, no mínimo, ingênua. Waters igualmente recebe pedradas constantes por causa da sua verborragia. No fim do ano passado, durante turnê dele pela América do Sul, hotéis no Uruguai e na Argentina cancelaram reservas do baixista devido a suas críticas pesadas à reação de Israel ao ataque do Hamas que iniciou o conflito na Faixa de Gaza.
Nothing But the Blues – Eric Clapton [Disco de vinil]
O posicionamento de artistas em relação a causas variadas é uma tradição, a exemplo das manifestações do beatle George Harrison contra a fome em Bangladesh ou, mais recentemente, de Angelina Jolie em prol da educação de crianças pobres. Manifestar-se publicamente a respeito desses problemas, com desdobramentos como shows beneficentes, sempre fez parte da cartilha das celebridades e era bem menos arriscado do que falar de política em meio ao mundo polarizado da atualidade. Quando o assunto divide opiniões, parte dos fãs fatalmente irá torcer o nariz.
Não foi apenas a dupla Clapton e Waters que se enroscou feio falando de forma superficial sobre a complexa guerra em curso no Oriente Médio. Quando o bárbaro ataque dos terroristas do Hamas ocorreu em Israel, a opinião pública ficou imediatamente a favor do país, com declarações de astros como Madonna e Natalie Portman. Conforme a reação de Israel ficou mais dura, causando a morte de milhares de civis na Palestina, os humores mudaram de lado e as críticas vieram. Moderada, a israelense Gal Gadot, por exemplo, desagradou a gregos e a troianos ao fazer uma simples declaração em favor da paz — judeus a criticaram por não ser mais clara em apoiá-los, já os palestinos a acusam de ser sionista. Resultado: a atriz foi “cancelada”.
The Wall – Roger Waters [Disco de vinil]
Em alguns casos, a punição transcende o ambiente das redes sociais, descambando para boicotes no mundo real. Aí é prejuízo na certa para as carreiras. A atriz Melissa Barrera foi demitida do elenco de Pânico 7 após fazer um comentário pró-Palestina nas redes. Vencedora do Oscar, Susan Sarandon caiu na mesma malha fina, por externar posição parecida: acabou sendo dispensada da renomada agência de talentos United Talent Agency (UTA).
Palestina: um século de guerra e resistência – Rashid Khalidi
A saia justa chegou à mais recente edição do Festival de Cannes deste ano, quando os organizadores pediram às estrelas que evitassem polêmicas. Cate Blanchett descumpriu a ordem de maneira elegante. Sob as fendas de seu modelito preto e branco assinado por Jean Paul Gaultier, um cetim na cor verde contrastava com o vermelho do tapete de honra, formando as cores da bandeira palestina. Para bom entendedor, só um vestido basta. Pelo menos, até agora, Cate escapou ilesa de qualquer linchamento.
Não se posicionar também pode ser um problema. Recentemente, a atriz Zendaya foi acusada pelos ativistas do TikTok de praticar o silêncio no Met Gala, onde usou uma roupa que lembrava a dos opressores da distopia Jogos Vorazes. A expectativa no mundo virtual era que ela gritasse em prol dos palestinos. Sábio mesmo é Leonardo DiCaprio, que fez do meio ambiente sua causa pessoal — os cancelamentos nesse tema, em geral, são bem mais raros.
Publicado em VEJA de 21 de junho de 2024, edição nº 2898