O instinto de Paul McCartney como compositor desabrochou em 1956, quando, aos 14 anos, sofreu uma tragédia nunca superada: a morte precoce de sua mãe, Mary, aos 47, de câncer de mama. Naquele mesmo ano, munido de um violão Zenith adaptado para canhotos, ele escreveu sua primeira canção, I Lost My Little Girl (Eu Perdi Minha Garotinha, em português). “Não é necessário ser um Sigmund Freud para reconhecer que a canção é uma resposta muito direta à morte de minha mãe”, escreveu McCartney na obra As Letras, que chega às livrarias brasileiras na sexta-feira 5. A edição de luxo, publicada pela editora Belas Letras, faz valer o preço pouco acessível de 599,90 reais. O autor, ainda muito produtivo e bem conservado aos 79, fora os exageros do Botox, destrincha a origem de 154 de suas composições, muitas delas escritas ao lado de John Lennon, como as inesquecíveis Yesterday e Let It Be. Ricamente ilustrado com mais de 600 imagens raras, de fotografias a manuscritos, o calhamaço de 960 páginas é um deleite não só para os fãs dos Beatles, mas também para todo bom interessado em música — tipo que dificilmente não faz parte do clã de admiradores do incontornável quarteto de Liverpool.
Para além de seu valor histórico, ao resgatar os bastidores de letras entoadas pelos Beatles, o livro se revela, segundo o próprio McCartney, o “mais perto de uma autobiografia” a levar sua assinatura. “Algumas pessoas, quando chegam em certa idade, gostam de consultar o diário e relembrar o passado. Esse tipo de caderno eu não tenho. Mas tenho as minhas canções — centenas delas —, que, na prática, servem para a mesma finalidade”, diz ele no livro. Sem modéstia, o músico ainda crava: “Minhas letras são mais reveladoras do que qualquer biografia dos Beatles”.
O lançamento do livro chega encostado em outras novidades recentes voltadas para a banda, como a esperada série documental The Beatles: Get Back, que estreia em 25 de novembro no Disney+, com direção de Peter Jackson (de O Senhor dos Anéis) e a promessa de abundantes cenas inéditas. A divulgação de raridades e a liberdade para falar sobre o passado sem amarras refletem a cicatrização da ferida aberta há cinquenta anos, quando o popular grupo se separou. Hoje, octogenários (ou quase lá), Paul e Ringo e as viúvas de Harrison e Lennon parecem ter superado os muitos atritos que cercam a história dos Beatles.
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O objetivo de Get Back, aliás, é tentar desfazer o clima de um documentário feito na época de lançamento de Let It Be, que ficou famoso por uma cena de briga entre Paul e George. Gravações inéditas foram editadas por Jackson agora de forma a apresentar uma banda feliz e sem indícios de que iria se separar. Revisão parecida acontece no livro de McCartney. A sincronia entre os músicos sobressai em relação aos confrontos, assim como a diversão de ser jovem e famoso, combinação que acrescenta novas camadas e sentidos às canções.
As letras dos Beatles: A história por trás das canções
A organização do livro elenca as músicas por ordem alfabética e não cronológica, criando um caleidoscópio de memórias que vai e vem no tempo. Para cada uma, McCartney reserva entre três e quatro páginas com recordações das circunstâncias das composições. Em Eleanor Rigby, por exemplo, diz que não sabia da existência de uma mulher com o mesmo nome enterrada em um cemitério de Liverpool. A partir dessa revelação, ele discorre sobre as casualidades da vida, como o dia em que conheceu George Harrison em um ônibus, e John Lennon na festa de uma igreja. “Os Beatles só existiram por causa dessas pequenas coincidências”, conta.
No âmbito pessoal, McCartney aponta canções inspiradas no pai, Jim; em romances arrebatadores, como a relação com a atriz Jane Asher (All My Loving); e na sua ex-esposa Linda McCartney, também vítima de câncer de mama em 1998. Sua mãe, porém, é imbatível no papel de musa inspiradora. Let It Be surgiu após um sonho no qual ela lhe dizia: “Vai ficar tudo bem, deixe estar” (let it be, em inglês). “Mother Mary”, como ele a chama na letra, tinha razão: mesmo depois dos Beatles, McCartney ainda colhe os louros de sua produção. Para ele, o sonho não acabou.
CLÁSSICOS DESTRINCHADOS
Por meio das composições, Paul McCartney registrou momentos marcantes de sua vida
Hey Jude
A canção foi feita para Julian, filho de John Lennon com a primeira esposa, Cynthia. John havia se separado para ficar com Yoko Ono, e Paul ficou preocupado com o garoto e com o modo que ele reagiria ao divórcio. O título inicial era Hey Jules, mas o músico mudou para Jude, por ser um nome mais genérico.
Penny Lane
A Rua Penny Lane, em Liverpool, era parte do trajeto que Paul fazia de ônibus para encontrar John. Até hoje o local abriga os prédios descritos na letra, como a barbearia, o banco e o corpo de bombeiros. “Todos os integrantes dos Beatles cortaram o cabelo ali em algum momento”, conta Paul.
Say Say Say
Composta em parceria com Michael Jackson, em 1983, a faixa nasceu assim que os dois se conheceram. “Eu o deixei tomar a iniciativa. Acho que grande parte da sensibilidade da letra veio do Michael.” Paul revela, por exemplo, que nunca teria pensado na bela frase “baptised in all my tears” (batizado em minhas lágrimas).
Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band
A canção que dá nome à banda alter ego dos Beatles surgiu em uma viagem de avião, quando o roadie Mal Evans pediu a Paul que lhe passasse o sal e a pimenta (salt and pepper, em inglês). O músico respondeu, confuso: “Sargent pepper?”. “Eu tinha tomado ácido lisérgico”, diz ele sobre a droga da época, o LSD.
Eleanor Rigby
Embora exista uma lápide no cemitério de Liverpool com o nome Eleanor Rigby, Paul diz não se lembrar de tê-la visto antes de compor a faixa em que a personagem morre. A inspiração veio de uma senhora para quem Paul cortava a grama. “Talvez a música tenha começado com um nome diferente”, assumiu.
Publicado em VEJA de 10 de novembro de 2021, edição nº 2763
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