Acusações de racismo na passarela viram caso de Justiça
Reinaldo Lourenço e Gloria Coelho foram acusados de atos preconceituosos, viraram alvo de “cancelamento” nas redes sociais e decidiram brigar nos tribunais
O racismo é crime, deixa sequelas drásticas em quem é alvo dele e impede uma sociedade de conviver em harmonia. Essa triste realidade, inflamada nas últimas semanas pelo brutal assassinato do negro George Floyd por um policial branco em Minneapolis, vem provocando manifestações e também um revisionismo histórico em diversos setores em todos os cantos do mundo. Com a indústria da moda, cujo DNA há até pouco tempo era ser elitista, arrogante e excludente, não é diferente. No Brasil, grandes figurões da área entraram na mira por meio de denúncias (muitas delas anônimas) publicadas no perfil do Instagram Moda Racista. Uma das manequins que apareceram como vítimas no espaço foi a baiana Diara Rosa. Filha de uma catadora de mariscos da Ilha de Itaparica, ela não era grande conhecedora dos nomes que ocupam o panteão da moda nacional quando desembarcou em São Paulo para tentar carreira, há sete anos. Sabia de cabeça o nome de poucos grandes estilistas, entre eles os badalados Reinaldo Lourenço e Gloria Coelho. “Eram ícones para quem eu sonhava desfilar”, lembra. Em uma temporada de passarela em 2015, ela foi enviada para fazer o teste para a apresentação da São Paulo Fashion Week no ateliê de Lourenço. Passou horas em pé, equilibrando-se em um salto alto, sem direito sequer a um copo de água. Quando foi chamada para a sala do costureiro, ficou enfileirada — no que o mercado chama de “paredão” — ao lado de outras meninas por menos de dez segundos. “Foi quando ele olhou para meu agente com cara de nojo e nos disse de imediato: ‘Podem sair daqui’.” No caso, ele se referia apenas às modelos negras. “Ele me fez sentir um lixo”, conta Diara.
Mesmo assim, ela tentou fazer outros cinco testes com Reinaldo Lourenço, mas sempre acabou sendo dispensada logo de cara, da mesma forma fria. “Eu peguei campanhas do Kenzo e da Vodafone, desfilei em Paris e Milão. Será que ele não poderia ao menos me ver caminhar para então decidir se contratava?”, questiona. No casting para um desfile de Gloria Coelho, a modelo afirma ter sentido uma humilhação maior. Foi orientada a esperar do lado de fora, dentro de uma van, sem entrar no ateliê ao lado das colegas brancas. O motivo? Esperar autorização para ficar cara a cara com a estilista. Uma hora e meia depois, nada de ser chamada. Até que um agente que coordenava o trabalho terminou com a cena, abrindo o jogo. “Esquece, a Gloria não curte trabalhar com negras, não fazem o perfil da marca”, ouviu dele.
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Clique e AssineNa esteira do movimento iniciado pela página Moda Racista, outras modelos fizeram relatos parecidos sobre o comportamento de Reinaldo e Gloria. Com desfiles para Balmain e Dolce & Gabbana no currículo, Samile Bermannelli escreveu em uma rede social: “E o medo e opressão que as modelos sentem ao saber de casting dessa família? É como se fosse um gatilho”. Paulistana radicada em Nova York, a modelo Thayná Santos seguiu a mesma linha. “Engraçado o Reinaldo postando fotos com a hashtag do momento”, escreveu ela, referindo-se a #blacklivesmatter, surgida em torno da comoção do assassinato de George Floyd. “Todos sabem e veem que, nos castings, ele nem olha na cara das modelos negras, muitas vezes faz piadas nada agradáveis sobre nossos traços físicos”, completou Thayná.
Em poucos dias, o perfil Moda Racista somou mas de 55 000 seguidores. Outro alvo das denúncias foi o responsável pelas propagandas de TV da Riachuelo, o publicitário Ralph Choate. Ele foi afastado dessa função depois de ser acusado de só colocar negros em campanhas da marca por uma exigência de cotas, “mas desde que não tivessem cara de pobre”. A VEJA, Choate nega racismo, mas faz um mea-culpa: “É possível que, mesmo sem intenção, eu tenha ofendido alguém com minhas palavras. Se o fiz, com sinceridade, peço desculpas”.
Reinaldo Lourenço também fez um mea-culpa. “Eu errei”, assumiu. “Tenho consciência de que me faltaram empatia e compreensão em relação às modelos negras.” Embora tenha reconhecido a grave falha, ele entrou no dia 11 de junho com uma ação em caráter de urgência na 39ª Vara Civil de São Paulo para tirar do ar o Moda Racista. A juíza Juliana Pitelli da Silva não acatou o pedido por ver no gesto uma tentativa de censura. Ela determinou, no entanto, que o Instagram revele o autor da conta para permitir direito de resposta. “Por melhor que seja a intenção desse perfil, é fundamental saber o nome à frente do negócio, até para os acusados terem como reivindicar erros e exageros”, afirma Raphael Garófalo Silveira, advogado de Lourenço. Outro especialista da mesma área concorda com o colega. “Perfil apócrifo com denúncias anônimas pode gerar um ‘gabinete do ódio’ às avessas”, alerta Newton Dias, especialista em direito digital. O Moda Racista saiu do ar de forma voluntária após a ação movida por Reinaldo Lourenço. O Instagram promete entregar o IP e identidade do celular do criador da conta. Até a quinta passada, 18, no entanto, isso ainda não havia acontecido.
No mundo da moda, Reinaldo Lourenço é tratado como “O Rei” por suas amigas e clientes. É do tipo que arremessa grampeador na parede nos momentos de fúria e dá show de estrelismo na frente de todo mundo. Tem o hábito de medir o interlocutor da cabeça aos pés sem cerimônia e, muitas vezes, comenta com quem está ao lado que a pessoa em questão é “cafona”. Com cabelo rente à cabeça ao estilo dos militares dos anos 50, ele ficou preso ao passado de quando a moda era ser arrogante. Não existe nada mais antiquado do que isso. Seus vestidos e peças de alfaiataria são famosos por durar a vida toda. Mas sua originalidade já foi bastante contestada. Tão conhecido pelo talento quanto pela língua afiada, o estilista já falecido Ocimar Versolato lançou, em 2005, um livro de memórias intitulado Vestido em Chamas. Entre fuxicos e retalhos alheios e da própria vida, ele descreve um episódio ocorrido em um provador da butique da Comme des Garçons, nos anos 90, em Paris, em que um casal de estilistas, na obra tratados como “Graça Preá e Rinaldo Botelho”, foi flagrado fotografando modelitos dentro do provador para produzir depois cópias em série. Eles teriam sido detidos pela polícia e acionado a Embaixada do Brasil. Personagens óbvios do escândalo, Reinaldo e Gloria sempre negaram a história.
A dupla hoje no foco do movimento antirracismo foi casada por 25 anos e teve um único filho, o também estilista Pedro, de 30 anos. Como pai, mãe e filho só andavam de roupas escuras durante muito tempo, ganharam dos detratores o jocoso apelido de Família Addams. Atualmente Pedro está mais solar: radicado em Londres, trabalha apenas com tecidos ecológicos, como couro de abacaxi. Reinaldo e Gloria foram mais poderosos e badalados no passado. Com a pandemia, a crise que já existia no negócio de ambos se aprofundou. Está vazio hoje o ponto onde operou por décadas em São Paulo a loja de Lourenço. Ele justifica o fato dizendo ter esvaziado o local para focar as vendas por WhatsApp. Em março, o Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região de São Paulo penhorou parte da receita da empresa para quitar uma dívida trabalhista na casa dos 30 000 reais.
Além dos pedidos de desculpas, Reinaldo Lourenço e Gloria Coelho prometem promover atitudes de inclusão em suas empresas. Mas ainda há muito a ser feito no campo da moda — aqui e no exterior. Uma das modelos mais conhecidas do mundo, a belíssima Naomi Campbell teve mais visibilidade e alcançou o sucesso graças ao apoio de amigas que não se curvavam ao preconceito. No fim dos anos 80, ganhou destaque a atitude das modelos Linda Evangelista e Chirsty Turlington em prol da colega quando as três estavam em início de carreira. Estilistas que recusavam a amiga negra eram cobrados diretamente pelas duas: se Naomi não desfilasse, elas também não colocariam seus pés na passarela. Como se vê, ações de inclusão efetivas vão muito além do gesto de postar hashtag engajada no Instagram.
Publicado em VEJA de 24 de junho de 2020, edição nº 2692