“Proteger democracia é mais fácil que reconstruí-la”, diz estudioso
O cientista político americano Brian Klaas ensina como os países podem se vacinar contra maus líderes e analisa políticos como Putin, Trump e Bolsonaro
Poucos acadêmicos atuais monitoram o pulso das democracias no mundo com o olhar afiado do americano Brian Klaas. Ligado à University College de Londres e articulista do jornal The Washington Post, o cientista político de 36 anos acompanhou de perto a aventura populista de Donald Trump e entrevistou dezenas de pessoas, de um ex-governante da Tailândia a filhos de ditadores africanos, para investigar as causas da crise existencial que abala a democracia, e compreender o que move a atual safra de políticos. Em Corruptíveis (Cultrix), seu primeiro livro publicado no país, ele identifica as falhas que permitem a ascensão de maus líderes e propõe vacinas institucionais contra a ameaça. Na entrevista, reflete sobre os desafios democráticos, a guerra entre Rússia e Ucrânia, Trump – e o Brasil de Jair Bolsonaro:
Nos últimos anos, a confiança na democracia sofreu danos em diversos países. É uma conquista da civilização em risco? Estou preocupado com o estado da democracia ao redor do mundo. Os sistemas frágeis ou jovens estão retrocedendo, caminhando para o autoritarismo, enquanto naqueles plenamente estabelecidos, como é o caso dos Estados Unidos, também há uma perda da fé nos processos democráticos. Essas duas coisas acontecendo em conjunto trazem um quadro sombrio. São cerca de quinze anos de declínio direto da democracia em todo o mundo. A cada ano, a humanidade ficou menos democrata, revertendo a tendência do fim do século XX.
Como democracias jovens, a exemplo do Brasil, podem se precaver contra retrocessos? Nesses países, acertar a escolha dos líderes é um imperativo que parece óbvio, mas tem sido às vezes menosprezado, com consequências trágicas. Vamos olhar para um país com herança menos democrática do que os Estados Unidos, a Turquia. Seu presidente, Recep Erdogan, desmantelou a democracia nos últimos vinte anos. Se Donald Trump fosse eleito presidente da Turquia naquele mesmo ano de 2002 em que Erdogan subiu ao poder, ele teria feito um desmonte idêntico. Trump teve mais dificuldade em acabar com a democracia nos Estados Unidos porque existem sistemas de contenção mais robustos. Se um país tem uma democracia jovem e frágil, eleger o líder errado é muito perigoso. Em lugares como o Brasil, isso significa que, a cada eleição, acertar a escolha se torna uma necessidade dramática.
Desde a eleição de Jair Bolsonaro, seus críticos oscilam entre vê-lo como um presidente desorientado que se auto-sabota – ou uma figura perigosa a ser levada muito a sério. Até que ponto se deve temer seus rompantes golpistas? Bolsonaro não é um intelectual, mas é preciso certa inteligência social para entender o momento político. Tanto ele quanto Trump entenderam como algumas pessoas estavam com raiva e se aproveitaram disso de modo muito eficaz para chegar ao poder. E sim: você pode ser um idiota absoluto e também extremamente perigoso. Muitas vezes se tem a imagem sedutora de que os piores ditadores da história são pensadores ideológicos sofisticados. Ocasionalmente, isso é verdade, mas a maioria dos líderes autoritários que estudei de perto para produzir meu livro são narcisistas impulsivos que acabam derrubados por sua obsessão com seus próprios egos, poder e dinheiro, ou pela incapacidade de pensar a longo prazo. Isso pode ser realmente perigoso porque eles não se importam. Não creio que Trump ou Bolsonaro percam o sono à noite por causa do que fizeram. Eles apenas fazem o que fazem, sem remorsos.
O ex-presidente Lula, favorito nas pesquisas eleitorais, já esteve preso por corrupção. Ainda assim, muitos que não engoliam sua figura agora o veem como opção para derrotar Bolsonaro. Como o senhor analisa esse cenário? Os eleitores tendem a perdoar os pecados das pessoas que estão do mesmo lado que eles – isso é chamado de “polarização negativa”, quando só se quer derrotar o “outro lado”. Também há o que os filósofos políticos chamam de problema das mãos sujas: em sistemas políticos debilitados, como é o caso do Brasil, não há anjos. Não se chega aos níveis mais altos da política brasileira jogando um jogo limpo. Isso é horrível de constatar, mas provavelmente é verdade. Muitos eleitores fazem um cálculo semelhante: o que é uma ameaça maior para nosso país, um líder potencialmente corrupto ou alguém que pode tomar o poder com um projeto populista autoritário? Francamente, não é uma maneira estúpida de pensar sobre política diante de uma ameaça existencial ao país.
Se Lula ou outro opositor vencer, ele terá condições de governar? Uma coalizão que eventualmente derrotar Bolsonaro, ainda que não se empolgue muito em votar nesse outro candidato, tem como trabalho restringir os impulsos populistas da pessoa que ajudou a eleger e acelerar a renovação na política. Como impedir a pessoa que chega ao poder de se comportar mal? E como tirar os políticos tradicionais de cena o mais rápido possível para dar lugar a uma nova geração de líderes? A solução não está nas mãos de uma pessoa: deve vir do sistema, por meio de mecanismos que permitam arejar o poder e até permitir a substituição célere dos maus políticos. Esse é um projeto de longo prazo e, por isso, não é muito sedutor para os eleitores: parece um caminho abstrato e árduo. Mas é um esforço que compensa. No caso do Brasil, a reforma sistêmica é a única maneira de o país sair dessa confusão no longo prazo.
Como o atual conflito entre Rússia e Ucrânia pode ser interpretado sob a luz de seus estudos sobre o poder? A Ucrânia teve muita sorte. O presidente Volodymyr Zelensky revelou-se disposto a arriscar a própria vida para lutar por seu país. Ninguém, contudo, poderia saber se ele seria um bom ou um mau líder antes de ser testado. O problema que isso expõe é: nós realmente queremos deixar essa escolha dos líderes ao acaso? Você não pode prever se seu país terá ou não uma crise, mas pode prever se seu sistema produzirá bons líderes em maior ou menor quantidade.
Do lado russo, o que falar sobre Putin? A psicologia evolutiva explica por que gravitamos em torno de líderes que são homens fortes como Putin. Ainda somos guiados pela parte do nosso cérebro que se volta para essas figuras em tempos de crise. Depois de entronizados, esses autocratas fazem da crise uma arma a seu favor: toda vez que sua liderança está ameaçada ou a coesão no país está diminuindo, eles fabricam um conflito, o que ativa essa parte de nossos cérebros novamente. Putin entende isso, por isso posa sem camisa, andando a cavalo, empunhando armas. Além de criar crises invadindo países. Eis o paradoxo: Putin afundou a economia russa e ainda é popular por se vender como “a única pessoa que pode salvar vocês”.
As pessoas em geral parecem resignadas com a deterioração da política. Como mudar esse sentimento? Fiz uma boa quantidade de pesquisa de campo em países que perderam a democracia ou se tornaram ditaduras completas, e praticamente todo mundo que ouvi disse que gostaria de ter percebido de antemão que teria sido possível impedir isso. Proteger a democracia é mil vezes mais fácil do que reconstruir a democracia. A cada dia que se demora em tentar salvar ou melhorar o sistema, mais difícil fica.
O que as pessoas comuns podem fazer nessa luta? A participação delas faz uma grande diferença. Envolver-se, ainda que no poder de baixa escala, é extremamente benéfico para o funcionamento da política de qualquer país. Outra coisa importante: aqueles que estão em posição de poder em partidos têm responsabilidade de procurar ativamente as pessoas para participar, em vez de esperar que elas venham até eles. Um último ponto que proponho é estabelecer um “shadow cabinet”, ou governo de sombra, mas num nível muito mais popular do que se vê, por exemplo, na Inglaterra: é possível selecionar pessoas aleatoriamente na população e pedir que elas discutam problemas reais que os políticos estão debatendo. Esse governo não seria formalmente capaz de mudar nada, mas suas conclusões colocariam pressão sobre os políticos.
Em que medida as redes sociais mudaram nossa relação com o poder? As pessoas comuns têm mais poder agora: é a primeira vez na história que podem moldar narrativas políticas. Também mudou o perfil de quem é atraído pelo poder: no passado, uma figura com aspirações públicas teria de se dedicar por muito tempo à atividade antes de se tornar famosa; hoje, há o fenômeno do “político influencer”, que governa, muitas vezes, por Twitter ou Instagram, agitando a internet para obter mais engajamento. É exatamente o oposto do que se deseja em um governo competente. As redes sociais tornaram-se tão tóxicas na política – há ameaças de morte, assédio, violência – que desencorajam as pessoas boas a entrar nessa briga.
Como o senhor enxerga a relação entre poder e ciência após a politização do tema na pandemia? Houve uma espécie de estranha fusão entre questões científicas e políticas. Tudo no gerenciamento de pandemia foi movido por um jogo de interesses e embates ideológicos, e embora queiramos que a ciência informe nossas decisões políticas, não se pode substituir uma coisa pela outra. Em muitos lugares, a ciência se tornou política. Em uma democracia funcional, na era pré-mídia social, sem teorias da conspiração desenfreadas, a ciência era uma coisa apartidária. A pandemia mudou isso. As pessoas em posição de poder encontraram vantagem eleitoral na politização da ciência e isso terá efeitos sobre nosso futuro. Exemplo disso é o movimento antivacina, que inevitavelmente reduzirá as taxas de vacinação para doenças além da Covid-19. É um aspecto terrivelmente deprimente da política moderna.
No fim do dia, o senhor se considera otimista ou pessimista sobre os rumos da democracia? Sou profundamente pessimista no curto prazo e otimista no longo prazo. Nos Estados Unidos ou no Brasil, todos os desvios da política no momento são difíceis de ser revertidos no curto prazo. Não há solução imediata. Mas o otimismo vem do fato de que, embora eu tenha conhecido algumas pessoas terríveis que são poderosas, no geral acredito que o ser humano é bom, e que a maioria de nós quer ajudar uns aos outros. Também estou convencido de que podemos mudar as democracias para torná-las mais próximas das pessoas de novo e, assim, fortalecê-las. Não acho que isso vá acontecer logo, mas quem diz que isso é uma causa perdida está errado. Quando muitas pessoas se unem para retomar a direção certa, isso tem um peso decisivo.