Provocar ou agradar: afinal, qual o papel da arte?
Cancelamento da exposição ‘Queermuseu’ em Porto Alegre polarizou opiniões, um reflexo do que a arte faz: refletir os pensamentos de uma época
Das 263 obras expostas na mostra Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte da Brasileira, cinco foram as mais espinafradas pelo Movimento Brasil Livre (MBL), voz mais aguda do protesto que levou ao fechamento da exposição sediada pelo Santander Cultural, em Porto Alegre, um mês antes do previsto. Entre elas, o quadro Cruzando Jesus Cristo com Deusa Shiva, de 1996, de Fernando Baril, que mostra o redentor com diversas pernas e braços, em referência ao ídolo da tradição hinduísta. Muitos religiosos se revoltaram, porque a imagem brinca com um símbolo sagrado para eles. Porém, o que seus críticos se recusam a observar é que a arte não está necessariamente à disposição de qualquer religião. Ela é a livre expressão de um artista, que pode – por que não ? -, ser seguidor ou simpatizante de duas doutrinas distintas. Os críticos também parecem não se dar conta de que sugerir uma hierarquia entre as religiões — que Jesus seja superior a Shiva — pode indicar preconceito.
A mesma lógica pode ser aplicada para as considerações do que é imoral ou indecente. As outras quatro obras atacadas pelo MBL e congêneres apresentavam, além de ícones religiosos, cenas sexuais homoafetivas e o meme da internet “Criança viada” – uma piada interna entre gays. Tais imagens foram os pregos do caixão da mostra, acusada de propagar a pedofilia e a zoofilia. Para entender se as obras eram realmente tão malignas e propagandistas como dizem seus inquisidores, VEJA consultou especialistas em história da arte.
Reflexo do mundo – “A arte reflete o que existe. Fechar uma mostra é dizer: ‘A gente não quer ver que isso existe’”, diz Daniel Jablonski, artista e professor de história da arte moderna e contemporânea do Museu de Arte de São Paulo (Masp). “A arte mostra as diferenças. O resultado pode ser provocativo ou agradável, depende do espectador. O problema é quem espera que ela seja algo desejável. A arte não é propaganda. A arte mostra uma coisa, a propaganda vende um estilo de vida. A arte te dá espaço para refletir. Já a propaganda oferece uma imagem que você deve abraçar e ser. Essa confusão levou ao fechamento da exposição. Aquelas imagens não obrigavam ninguém a nada. O espectador não vê um quadro e passa a viver daquela maneira”, diz Jablonski, lembrando que ver um quadro sobre gays não muda a orientação sexual de ninguém.
“A arte reflete o que existe. Fechar uma mostra é dizer: ‘a gente não quer ver que isso existe.’”
Daniel Jablonski, artista e professor de história da arte do Masp
Édouard Manet, importante representante do impressionismo francês, foi um dos muitos nomes que viveram controvérsias como essa ao longo de sua carreira como artista. Caso do quadro Almoço na Relva, de 1863 (imagem no topo da matéria). Marco da modernidade, a obra mostra um grupo de homens vestidos ao lado de uma mulher nua. “Ali, ele quebra a ideia artística de que mulheres nuas são ninfas e deusas. Naquele caso, ela é uma prostituta. O público resiste ao elemento incômodo. Eles compram o serviço das prostitutas, mas não uma imagem em que ela é reproduzida”, diz Jablonski. “A obra diz: a prostituição existe. Mas não está mandando as pessoas aos prostíbulos. É uma questão de admitir que no mundo existem coisas diferentes de nós. Coisas com que podemos ou não concordar.”
O quadro de Manet, vale lembrar, é do século XIX.
Mexeu com a Igreja – A mescla do sagrado com o profano também é um velho pano para manga da provocação artística. Até a arte sacra já causou polêmicas. A escultura O Êxtase de Santa Teresa, de Gian Lorenzo Bernini, exposta na igreja Santa Maria della Vittoriam, em Roma, Itália, foi considerada, em 1658, ambígua no sentido erótico, por causa das feições da santa ao receber a flechada de um anjo. O Juízo Final (1541), afresco de Michelangelo na parede do altar da Capela Sistina, também foi visto como indecente e quase destruído pelos desgostosos, culpa dos personagens nus em um lugar tão sagrado.
Até um católico convicto pode “errar”. Caravaggio, por exemplo, foi convidado pela Igreja a pintar passagens do Evangelho, relembra Claudinei Cássio de Rezende, cientista social e professor de história da arte na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). “Ele pintou as emoções com tanto realismo que acabou chocando. Seu quadro A Morte de Maria, pintado por encomenda do mosteiro das Carmelitas por volta de 1602, levou o artista à desgraça: o decoro não aceitou o fato de que sua pintura representava uma morte mundana de Maria, em vez de um translado transcendental.” A rejeição da pintura levou Caravaggio a uma série de eventos desafortunados que resultaram em sua morte.
“A arte tem esse poder transformador de provocar, até de forma agressiva, de tirar o espectador da zona de conforto”
Lygia Eluf, artista e docente do Instituto de Artes da Unicamp
“Cada exposição deve ser pensada a partir de um ambiente e uma finalidade. Um artista pode provocar a moral religiosa, mas não seria adequado fazer isso em um lugar de culto”, lembra Luciano Migliaccio, professor de história da arte na Universidade de São Paulo (USP) e curador adjunto do Museu de Arte de São Paulo (Masp). “É diferente de um artista que usa a religião como elemento expressivo em uma exposição que tem como tema a liberdade sexual. Ele expôs suas convicções religiosas próprias (caso do quadro que cruza Jesus e Shiva). É inevitável que cada pessoa receba uma obra de arte a partir do que ela está preparada para enxergar. Todos podem dar as costas, ir embora e escrever uma crítica dizendo que não gostou do que viu.”
Liberdade de gostar ou não – Em um passado não tão distante, no fim da década de 90, Londres sediou a exposição Sensation promovida por jovens e provocadores artistas ingleses. Assim como acaba de ocorrer em Porto Alegre, a reação pública foi violenta, especialmente em relação ao pintor Chris Ofili, que representou a Virgem Maria como uma negra, cor pintada com excremento de elefante, e cercada por símbolos sexuais (a obra de 1996 seria vendida por 4,6 milhões de dólares em 2015), lembra Lygia Eluf, artista e docente do Instituto de Artes da Unicamp. “A arte tem esse poder transformador de provocar, até de forma agressiva, de tirar o espectador da zona de conforto. O desafio da democratização de espaços públicos é que pessoas que não estão preparadas para ver um determinado trabalho e acabam reagindo de forma extrema. É necessário que o público entenda que a obra é a necessidade de um artista que quer dialogar com o pensamento da época.”
A preparação do espectador é a resposta à pergunta: “Mas você levaria seu filho à exposição?”. O fato de que crianças foram levadas com grupos escolares ou familiares à mostra se tornou o ponto mais delicado do embate entre os que são contra e a favor. “Neste caso, cabe ao professor, que é um profissional da educação, ter o critério e o bom-senso da observação se determinada mostra deve ou não ser vista por determinadas faixas etárias”, sugere Rezende.