Há quem tenha cismado com o detalhe da bandeira — ou, melhor dizendo, da falta dela: hasteada no mastro plantado com gestos lentos na superfície lunar em 20 de julho de 1969, quatro dias depois de deixar a Terra, ela é vista no filme apenas como um vulto em que mal se distinguem as cores e formas do pavilhão americano. Emoldurar contra o azul quase negro do universo o conjunto constituído pela bandeira estranhamente rígida (não há ventos, e a pouca gravidade não basta para puxá-la para baixo) e pela figura do astronauta Neil Armstrong em seu traje espacial — esse é o tipo de instante de glória que diretor nenhum perde a chance de sublinhar em filmes como Os Eleitos (1983) ou séries como Da Terra à Lua (1998). Não, porém, em O Primeiro Homem (First Man, Estados Unidos, 2018), que estreia no país nesta quinta-feira. Tamanha é a indiferença do filme à tomada de posse da Lua que quase se poderia dizer que ela nunca aconteceu.
Não há dúvida, é claro, de que se pode tomar essa ausência conspícua de uma imagem marcante da missão Apollo 11 como uma declaração política do diretor Damien Chazelle: ele, e a maior parte da comunidade artística, não está aí para botar azeitona na empada nacionalista de Donald Trump. Há um motivo mais relevante, entretanto, pelo qual Chazelle relega a segundo plano o empenho dos Estados Unidos em vencer a corrida espacial que travava com a União Soviética e chegar àquele momento em que a humanidade pela primeira vez tocou outro corpo celeste que não o seu próprio. Por que, pergunta-se o filme, um homem — qualquer homem — se poria no rumo do mais absoluto dos desconhecidos e empreenderia uma jornada como essa, de perigos incalculáveis e desfecho incerto? Ao menos no caso de Neil Armstrong (1930-2012), o primeiro homem a pisar na Lua e o único, portanto, a tê-la inteira para si para sempre, as razões parecem ter sido tão intangíveis quanto profundas.
Desde a vertiginosa sequência de abertura, em que Armstrong (Ryan Gosling) tenta alcançar a estratosfera num superjato que quase se desintegra sob o esforço e por pouco não sela ali mesmo seu destino, o que sobressai para o espectador é a materialidade esmagadora da tentativa de vencer a gravidade terrestre — o barulho ensurdecedor, a falta de ar e a desorientação, os rebites que tentam saltar da fuselagem, a conspiração de tudo que é mecânico em favor do desastre — e a recompensa metafísica de fazê-lo. Piloto de testes na Base Aérea de Edwards, no deserto californiano de Mojave (o campo a partir do qual outro piloto, Chuck Yeager, venceu a barreira do som, em 1947), e engenheiro aeronáutico de talento, Armstrong se via já então, em 1962, tracionado por esses vetores concorrentes. Sua filha Karen, pouco mais que um bebê, estava sendo tratada de um tumor cerebral, e Armstrong acompanhava, em planilhas e gráficos, a resposta dela à radioterapia. Ou, dito de outra maneira, tentava dimensionar a força da criança para retornar sã e salva, dos confins da doença, à vida.
Karen morreu naquele ano, aos 2 anos e 9 meses. E, da interpretação mínima (no bom sentido) de Gosling, depreende-se que a perda dela lançou Armstrong numa espécie particular, e terrível, de desconhecido. Deixar a Base de Edwards — onde estava sendo discretamente colocado no estaleiro, em razão das dúvidas sobre seu estado emocional — e juntar-se ao Projeto Gemini, da Nasa, teria sido, então, tanto uma decisão de carreira quanto uma busca por um novo limiar que, de alguma forma, propiciasse algum sentido maior à ordem das coisas.
No lugar do épico e do triunfante que, verdade seja dita, cabem tão bem nas histórias sobre a corrida espacial dos anos 50 e 60, Chazelle opta por um registro discreto: prefere lidar com os desafios físicos do preparo, as mortes frequentes que iam minando o entusiasmo pelo Gemini, o desajuste de personalidades (Edwin “Buzz” Aldrin, que integrou a missão Apollo 11 com Armstrong e é interpretado pelo ótimo Corey Stoll, era o que se poderia chamar de um panaca), e as brigas amargas e sempre deixadas sem solução em casa. Claire Foy, a Elizabeth II de The Crown, brilha como Janet Shearon, a mulher inteligente, geniosa e impecavelmente honesta de Armstrong, num papel de poucos diálogos mas com sensibilidade aguda para a exasperação da personagem. Chazelle trata do miúdo e do cotidiano, porém, no mesmo diapasão de sua estreia na direção, Whiplash (2014), e de La La Land, que fez dois anos atrás com Gosling: os pequenos obstáculos que devem ser vencidos um de cada vez e as repetições extenuantes destinadas a extirpar a imperfeição são, para seus protagonistas, a matéria-prima da transcendência que eles perseguem.
O Primeiro Homem parte de uma fonte excelente — a biografia homônima (lançada aqui pela editora Intrínseca) do historiador americano James R. Hansen, que entrevistou longamente Armstrong e dezenas de pessoas de seu círculo íntimo e profissional. Chazelle, entretanto, corta na carne, e com muito proveito, o material à sua disposição: elimina tudo que se refira à vida pregressa e posterior do protagonista para se concentrar tão somente nesse período de 1962 até a alunagem de 1969. Nada poderia explicar Armstrong — ou qualquer outro desbravador — tão bem quanto esses anos decisivos. Nem o próprio Armstrong, um homem reservado e calado, poderia se explicar tão bem quanto Gosling o faz com sua atuação reticente, repleta de espaços livres, que dá contorno ao personagem sem tentar preenchê-lo em demasia. (Armstrong era de poucas palavras, mas boas: “Um pequeno passo para um homem, um salto gigantesco para a humanidade”, a frase com que marcou seu desembarque do módulo lunar, é um exemplo de eficácia poética.)
Emoldurado pela escala visual limpa mas majestosa de Chazelle, o desempenho de Gosling resulta numa espécie de meditação sobre a voragem que leva um homem a romper barreiras. Faz lembrar o poema (aquele do “Tudo vale a pena se a alma não é pequena”) do português Fernando Pessoa sobre o navegador Gil Eanes, que, em 1434, dobrou o Cabo Bojador, no norte da África, onde então se julgava ficar o fim do mundo. Ao contrário do que diz o poema, porém, Armstrong não teve de passar além da dor para dobrar o Bojador: dobrou-o por causa dela, e para deixá-la, afinal, do lado de lá.
Publicado em VEJA de 17 de outubro de 2018, edição nº 2604