Elisabeth Moss falou a VEJA por telefone sobre personagens marcantes, seu novo filme, O Homem Invisível, e o uso da ficção como arma para tratar de causas relevantes.
No livro O Homem Invisível, o protagonista vê na invisibilidade a chance de fazer o que quiser sem ser responsabilizado. Como foi receber o roteiro e descobrir que era algo completamente diferente? Eu me interessei quando soube que a história seria invertida, com a mulher no protagonismo. É a trama pelos olhos da vítima, e não do vilão. Percebi que seria uma maneira brilhante de passar uma mensagem sobre um assunto urgente: a violência doméstica, que é uma epidemia global. Não podemos fingir que não existe.
Alguma relação abusiva em sua vida, ou ao redor dela, serviu de inspiração para o papel? Leio e pesquiso muito sobre o assunto desde The Handmaid’s Tale. Não me inspirei em uma história específica. Para mim, era importante que o filme não transformasse o tema em algo pontual, mostrando um tipo de abuso ou de perseguição. Os relacionamentos tóxicos envolvem diferentes tipos de violência: física, mental, emocional. A mulher é alvo de manipulações variadas, que implicam dependência financeira, sentimental, medos e cerceamento de liberdade. Eu disse ao diretor que era importante mostrar tudo isso.
Suas heroínas não são das mais convencionais. O que acredita ser essencial na hora de representá-las? Quero viver mulheres reais. É interessante explorar a heroína que não tem superpoderes. June (de The Handmaid’s Tale) não é Jason Bourne, não tem habilidades sobre-humanas. Ela é só uma mulher, uma mãe, uma esposa num contexto terrível. Observar essa líder nascendo dentro dela é um deleite. Já Cecilia (de O Homem Invisível) está assustada, perdeu a própria voz, mal sabe quem é. Mulheres fortes e inteligentes também podem estar em relacionamentos abusivos. Muitas sentem que precisam demonstrar força para ser levadas a sério. Logo, não admitem fraquezas e vulnerabilidades. A vergonha é o que faz com que abusos não sejam denunciados.
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Desde Mad Men sua carreira tem sido marcada por papéis que a transformaram em símbolo feminista. Já se considerava uma ativista da causa antes? Sempre me considerei uma feminista, pelo simples fato de ser humana. A igualdade é uma bandeira que todos deveriam defender. Com esses projetos, percebi que não bastava falar que era uma feminista sem de fato agir como uma. Com Mad Men, aprendi mais sobre empoderamento. Percebi ali que muita coisa não mudou desde os anos 60 — a tal igualdade de gênero não era tão igual assim. Já The Handmaid’s Tale ganhou outra dimensão com as recentes mudanças na política mundial. Por muito tempo, pensamos que nossos direitos estavam garantidos, mas não é bem assim.
O Homem invisível ressaltou seu talento para interpretar alguém à beira da loucura. Como mantém a sanidade? É exaustivo, um desafio físico, emocional e psicológico. Mas sou boa em sair do papel e deixar para trás o que não quero levar comigo do set. Sou do tipo que faz uma cena extremamente dramática e, quando o diretor diz “corta”, logo conta uma piada, brinca e dá risada. Acho que esse é o modo que encontrei de manter a sanidade e ser capaz de fazer tais personagens. Para entrar em lugares obscuros assim, preciso também ter a capacidade de sair deles.
The Handmaid’s Tale denuncia os horrores de uma sociedade fundamentalista religiosa. Fazer uma série assim mexeu com sua crença na cientologia? Ao escolher esses projetos, decidi seguir meu coração. Em minha jornada, percebi que minha fé é ampla, não fica numa caixa: tenho fé no feminismo, fé nos direitos humanos, fé na igualdade.
Um dos assuntos da série é o aborto. Por que você apoia a Planned Parenthood, organização que realiza a maior parte dos abortos nos Estados Unidos? Cresci vendo amigas sem um atendimento de saúde adequado, sem dinheiro suficiente para ir ao médico, inclusive para o exame pré-natal e para atendimento psicológico. O Planned Parenthood oferece um local onde as mulheres podem ser atendidas, com aconselhamento sobre gravidez, acompanhamento para as que optam por manter a gestação, além de procedimentos feitos de forma segura para as que escolhem outro caminho. As mulheres merecem o direito de cuidar do próprio corpo sem hipocrisias.
Há comparações e até ironias que questionam se o regime totalitário de Gilead, de The Handmaid’s Tale, é melhor ou pior que o governo Trump. O que acha delas? Na primeira temporada, perguntei a Margaret Atwood com que deveríamos nos preocupar para não virarmos uma versão de Gilead. Ela disse: lute pelo direito de protestar e pela liberdade de expressão. Sem isso, estamos perdidos, estamos em um governo totalitário. Poder dialogar, falar sobre o que queremos, sobre nossas diferenças, e emitir uma opinião é essencial. Enquanto temos essa liberdade, estamos muito melhores que Gilead. Mas vai saber, né? É melhor ficarmos atentos.
Publicado em VEJA de 4 de março de 2020, edição nº 2676