A recordação precoce, dita em voz pausada e emoção contida, com forte sotaque gaúcho de Pelotas, leva Rafael Grampá a seus 3 anos de idade. “O primeiro desenho que lembro de ter feito foi um do Batman. Mostrei para minha mãe e ela disse: ‘Que bonitinho esse burrinho’. Respondi: ‘Não é um burro. É o Batman’.” O equívoco maternal fez o menino mal saído das fraldas trilhar um objetivo: traçar o Homem-Morcego, super-herói de sua infância, com perfeição. Aos 41 anos, ele chegou lá, e com excelência.
Em 2013, já mundialmente respeitado como quadrinista, numa aventura profissional que começara cinco anos antes, Grampá escreveu e ilustrou uma história curta do morcegão na antologia Batman: Black and White (em português, Batman: Preto e Branco), da renomadíssima editora americana DC Comics — que publica outros ícones como o Super-Homem e a Mulher-Maravilha. No próximo dia 11 de dezembro, Grampá dará seu salto mais ambicioso e, muito provavelmente, o mais celebrado. Lançará The Dark Knight Returns: The Golden Child (O Retorno do Cavaleiro das Trevas: a Criança Dourada), criado ao lado do americano Frank Miller, um dos nomes mais lendários das histórias em quadrinhos, autor de clássicos inescapáveis como Sin City e Os 300 de Esparta.
O envolvimento profissional do artista brasileiro com as HQs veio quase como uma epifania, que agora ele costura com uma frase que diz ter ouvido do guitarrista Keith Richards, dos Rolling Stones: “Quando a vida está estável, parece aquela linha reta do monitor cardíaco”. Como já não se contentava com as atividades de diretor de animações dentro de empresas tradicionais, e a estabilidade o incomodava, Grampá decidiu buscar aquela vontade primeva. “Tinha chegado a hora de batalhar pelos sonhos da infância”, diz.
O sucesso veio muito mais rápido do que o esperado. Inicialmente, com a antologia 5, da qual foi coautor, ao lado dos irmãos gêmeos paulistanos Fábio Moon e Gabriel Bá, além da participação de dois artistas estrangeiros. Era, então, apenas seu segundo trabalho no universo dos quadrinhos, mas lhe serviu de plataforma para chegar ao topo. A antologia ganhou o prêmio Eisner, equivalente ao Oscar das HQs, em 2008. Ele, Moon e Bá foram os primeiros brasileiros a alcançar o feito. “A premiação fez aumentar o interesse pelo meu trabalho, os fãs passaram a exigir mais e mais”, afirma Grampá. E da pressão ele ergueu um respeitável edifício.
Em seguida, naquele mesmo 2008, apresentou seu romance gráfico de estreia, Mesmo Delivery. Passado no interior profundo de uma nação de rednecks que aparenta um Estados Unidos apocalíptico, conquistou público e crítica. A obra amealhou fãs como o quadrinista italiano Milo Manara e os americanos Paul Pope e Robert Crumb, entre muitos outros. Para o ator americano Keanu Reeves, o brasileiro “é uma revelação”. O escocês Mark Millar, outra referência do ramo, autor de obras como O Velho Logan — do personagem Wolverine —, chamou-o de “gênio”.
Um aviso aos incautos: Grampá não desenha nem escreve para crianças. Seu círculo é de adultos, com cenas violentíssimas e assuntos que tocam em questões existencialistas, além de críticas sociais e políticas — e é nesse campo que passeará The Golden Child, este que virá à luz em dezembro, de mãos dadas com Frank Miller.
Os dois se conheceram num jantar em 2015, em São Paulo, cidade em que Grampá mora. O americano o convidou para uma conversa em Nova York. Desde então, eles se debruçaram na continuação da mais famosa obra já criada sobre o Batman, O Cavaleiro das Trevas, de 1986, de autoria de Miller. The Golden Child será protagonizado por dois filhos do Super-Homem e pela herdeira do manto de Batman, uma Batwoman “empoderada”. Descreve Grampá: “Abordaremos o ‘acordar’ da sociedade. Minorias estão acordando. Jovens estão ensinando, como faz Greta Thunberg, a ativista de 16 anos”. Os detalhes da história estão sob sigilo, mas ele afirma que “irritará muita gente”. E essa muita gente inclui líderes neopopulistas como Trump e Bolsonaro. “HQs têm impacto”, avisa. “Note os rostos pintados de Coringa nas manifestações no Chile.” Grampá realmente conversa com adultos.
Publicado em VEJA de 27 de novembro de 2019, edição nº 2662