Relíquias no armário: a redescoberta de obras de mestres da pintura
Esquecidas em closets, sótãos ou depósitos, peças são resgatadas por pesquisadores e agora voltam a ser exibidas ao público
Mantida por mais de cinquenta anos dentro de um armário, uma tela quadrada com 40 centímetros de lado chamou a atenção do herdeiro que acabara de receber do espólio do pai uma casa no Maine, nos Estados Unidos. A obra em papel trazia no canto inferior direito a assinatura de Pablo Picasso e a data de 1919. Acredita-se ser um estudo do pintor espanhol para a cortina de palco do espetáculo de balé O Chapéu de Três Pontas, produzido pela companhia francesa Ballets Russes, que estreou naquele mesmo ano em Londres, na Inglaterra. No início de julho, a relíquia esquecida foi a leilão pela LiveAuctioneers, que a vendeu por 150 000 dólares.
Nem o vendedor nem o comprador quiseram se identificar. Segundo o herdeiro, a avó e uma irmã dela estudaram na Europa nos anos 1920. A tia-avó acabou se tornando professora de história inglesa na Universidade Rutgers, em Nova York, e gostava de colecionar livros raros e de arte. “A pintura foi descoberta em uma casa de propriedade de minha tia-avó, que foi passada a ela por um parente no fim dos anos 1930”, disse o vendedor em uma declaração. “Havia várias pinturas guardadas em um armário durante cinquenta anos (incluindo essa) que foram deixadas por ela.”
O valor baixo se explica porque a tela ainda não foi autenticada por Claude Ruiz-Picasso, herdeiro do pintor e principal responsável pelo espólio. O comprador tem 120 dias para submeter a obra à avaliação. A semelhança entre o estudo e a cortina, porém, é impressionante. Com 6 metros de comprimento por 5,8 metros de altura, a peça foi comprada em 1959 por Phyllis Lambert, filha de Samuel Bronfman, fundador do império Seagram, por 50 000 dólares. Durante décadas, ornamentou o restaurante Four Seasons, em Nova York. Em 2015, passou a integrar o acervo da Sociedade Histórica de Nova York, onde está em exposição até hoje.
Histórias como a do Picasso perdido não são raras no mundo da arte. No ano passado, um colecionador comprou por valores não revelados a aquarela O Prado de Van Gogh com Igreja Nova ao Fundo e a cedeu em comodato ao Museu de Arte Moderna de Saitama, em Tóquio. Datada de 1882, a obra ficou esquecida em um sótão durante anos e, mais tarde, chegou a ser vendida como quinquilharia por um carpinteiro. De volta aos Estados Unidos, a Apolo e Vênus, do mestre holandês Otto van Veen (1556-1629), foi encontrada no depósito do Hoyt Sherman Place, mansão histórica em Des Moines, em Iowa. A tela, que retrata Vênus como uma pintora em ação, passou por restauração para recuperar suas cores vivas. Avaliada entre 4 milhões e 11 milhões de dólares, ela está em exibição permanente no próprio teatro Hoyt Sherman.
O maior desafio dos pesquisadores é comprovar a autenticidade dos achados artísticos e evitar a ação de falsificadores. Na era moderna, análises laboratoriais detectam se o estilo, a técnica e o material utilizado são compatíveis com um determinado pintor, o que aumenta a probabilidade de identificação. Em alguns casos, nem isso é preciso. No século passado, uma equipe do museu das Capelas dos Medici, em Florença, na Itália, encontrou a entrada da sala secreta de Michelangelo debaixo de um armário na Basílica de São Lourenço. O lugar dava acesso a um alçapão que conduzia ao aposento, cujas paredes estavam repletas de desenhos do mestre italiano. Não houve dúvidas a respeito da autoria: Michelangelo provavelmente passou dois meses escondido lá, em 1530. Tirar Picassos, Van Goghs e Michelangelos do armário não é ótimo apenas para os colecionadores e herdeiros que os encontraram, mas também uma dádiva para a humanidade.
Publicado em VEJA de 28 de julho de 2021, edição nº 2748