Entre as provas de maturidade de uma cultura literária está o modo como ela se relaciona com as literaturas de diversas línguas. Uma livraria ou biblioteca, em Londres ou Paris, há de exibir uma rica variedade de clássicos universais em traduções de épocas diferentes, com abordagens próprias e dotadas, cada uma delas, de uma voz única. Ler os grandes romancistas russos, por exemplo, em suas traduções do século XIX é experiência completamente distinta daquela que se apresenta a quem lê uma tradução contemporânea. Ganha, assim, a língua de chegada, que passa a contar com novos meios para dizer de modo próprio o que os grandes escritores disseram; ganham os escritores, cujas obras circulam com fôlego sempre renovado; ganha, sobretudo, o leitor, que passa a fruir o rico mundo dos autores que admira com múltiplas possibilidades oferecidas por sua língua de origem.
É uma contribuição inestimável para a maturidade de nossa cultura literária, portanto, a nova tradução de Crime e Castigo, clássico eternamente vigoroso de Fiódor Dostoiévski (1821-1881). Na versão de Rubens Figueiredo, consagrado por traduções de Anna Kariênina e Guerra e Paz, de Liév Tolstói, os tormentos existenciais, morais e criminais de Ródion Raskólnikov ganham nova expressão diretamente do russo para o português dezoito anos após a primeira tradução da língua original, a de Paulo Bezerra, de 2001. Lá onde Bezerra buscou assimilar as hesitações, o nervosismo, as oscilações de humor dos personagens, que surgiam transbordantes na prosa de Dostoiévski, Figueiredo parece ter optado por um estilo mais sóbrio. Será matéria para os especialistas decidir se é um “amaneiramento de estilo”, como questionava Bezerra. É seguro, no entanto, que a leitura avança com fluência.
Das inúmeras obras-primas que a literatura do século XIX legou, poucas foram capazes de capturar com tanta intensidade o espírito do tempo que se anunciava naqueles anos de 1860 como Crime e Castigo. Como define Dostoiévski em carta a um editor: “Será um romance psicológico de um crime. É um romance da vida contemporânea”. O sopro da modernidade chega até nós na história de Raskólnikov por meio da oscilação entre a euforia intelectual e a angústia moral. Não é à toa que a filosofia do alemão Friedrich Nietzsche prestaria louvores à antevisão de Dostoiévski, e o pai da psicanálise, Sigmund Freud, dedicaria um ensaio seminal ao autor russo: a afinidade quanto a certa sensibilidade para perceber o que ia se definindo como nosso mundo é compartilhada por esses pensadores.
De todos os elementos modernos presentes nessa visão de mundo, nenhum define tão precisa e rigorosamente a natureza de Crime e Castigo quanto a noção de que se trata de uma época cindida, cismática: “raskol”, com efeito, significa “cisma” em russo, e “raskólnik” era a designação dos membros de uma seita originada de um cisma na Igreja Ortodoxa russa no século XVII. Raskólnikov, o personagem, evoca essas cismáticas figuras, mas transplantado para o ambiente das ideias em emergência no século XIX — que fornecem a textura ideológica e temática da obra, como observou o grande biógrafo de Dostoiévski, Joseph Frank. Niilismo, liberalismo radical e secular, variedades cruzadas de socialismo revolucionário, um racionalismo genérico, mas sem dúvida europeu e oposto ao tradicionalismo espiritual russo: a inteira marcha das ideias modernas na Europa do período reverbera no romance.
Tendo a cidade de São Petersburgo como cenário e as ainda incipientes modernizações da Rússia feudal como pano de fundo histórico, o romance apresenta o jovem Raskólnikov, ex-estudante dotado de certo brilho intelectual e mergulhado na mais extrema pobreza. Movido pelo sentimento de superioridade, ele defende num artigo a tese de que o grande homem estaria justificado de cometer os maiores crimes em nome da humanidade. À maneira de um César na Roma antiga, o protagonista se projeta como uma prefiguração do homem “para além do bem e do mal”, superando os limites da moralidade. Assolado por sua condição miserável, pelas agruras da mãe e da irmã no campo, e pela natureza errática de sua mente, esse singular herói perambula pelas ruas de São Petersburgo, febrilmente saltando de uma ideia a outra, cogitando implementar certo plano de ação sobre o qual, de início, nada sabemos. Quando descobrimos, é porque Raskólnikov já o está executando: o jovem assassina a machadadas a velha usurária que é dona de seu pequeno dormitório, a quem devia dinheiro. No momento do crime — uma das grandes cenas da história da literatura — a irmã da vítima aparece, forçando Raskólnikov a improvisar, matando-a também.
Desde seus primeiros esboços para o romance, Dostoiévski expressou a intenção de partir do crime realizado e seguir rumo ao verdadeiro elemento misterioso da obra: os meandros da mente capaz de arquitetar tal crime; as contradições do homem capaz de realizar um ato assim; e, sobretudo, a culpa que consome o assassino.
Uma vez que a investigação não será do criminoso, conhecido desde o início, Dostoiévski fica livre para a exploração desses elementos. O enredo mantém uma dimensão detetivesca: o investigador Porfíri Petróvitch caça seu criminoso e, ao mesmo tempo, permite que ele cace a si mesmo, pois é Raskólnikov que precisa descobrir suas motivações e lidar com seu castigo. Mas o romance é, acima de tudo, um texto de pendor filosófico sobre a natureza do mal, do pecado e da redenção. Como escreveu Dostoiévski, “o próprio assassino decide aceitar seu castigo para expiar seu crime”.
Sua visão abrangente da sociedade de seu tempo, ingressando na modernidade de modo oblíquo, permitiu-lhe ainda tratar com elaboração literária sem igual os conceitos em voga, em geral reunidos sob o termo niilismo, e cujo saldo na balança de Dostoiévski é mais que negativo. Afinal, como diz Porfíri ao abordar o crime: “Isso tudo são sonhos livrescos, senhor, são coisas de um coração conturbado por teorias demais”.
Na brilhante análise do crítico George Steiner em seu Tolstói ou Dostoiévski, o livro é um testemunho da sensibilidade trágica de seu autor. Se Tolstói representava o épico solar daquela literatura grandiosa — seu Homero —, coube a Dostoiévski o papel de poeta trágico — um Eurípedes em prosa vibrante e tortuosa. Nas palavras de Steiner, Dostoiévski era o elemento sempre no “limite do alucinatório”. Ou, ainda, “a soma das energias carregadas com a doença e a possessão”, que enxergou os homens em “seu momento dramático”, mas permaneceu um “homem de Deus”. Esse, aliás, seria também um perfeito resumo para um personagem tão genialmente complexo quanto Raskólnikov.
Publicado em VEJA de 1º de maio de 2019, edição nº 2632
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