Reynaldo Gianecchini cultiva um hábito curioso no camarim de Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças, versão teatral do filme de mesmo nome com que está em cartaz em São Paulo. “Não sou supersticioso, mas…”, diz a VEJA, antes de borrifar no pescoço e nos pulsos uma essência de alfazema para acalmar a mente. O lance místico reflete uma nova fase da vida do ator. O diagnóstico de um câncer agressivo, há dez anos, somado ao escrutínio obsessivo sobre sua vida pessoal forjaram em Gianecchini uma autoestima e um modo de ver o mundo mais relaxados que os do modelo inexperiente que estreou na Globo em 2000, como mocinho dividido entre Vera Fischer e Carolina Dieckmann na novela Laços de Família. Hoje, aos 49 anos, estabelecido na profissão e em paz consigo, Gianecchini supera estereótipos para reinventar, aos poucos, os padrões engessados do galã que personificou na TV.
A dimensão de seu desafio não é desprezível. Nos filmes de Hollywood ou nas novelas, por décadas prevaleceu a regra não escrita de que os protagonistas românticos masculinos não deveriam se afastar do figurino heterossexual, sob pena de quebrar o encanto do público por seus personagens másculos. Gianecchini parecia fadado a seguir os passos de bonitões como Tarcísio Meira e Edson Celulari, que encarnaram o papel de forma clássica. Mas o elefante na sala falou mais alto. Em 2019, após anos de rumores, Gianecchini assumiu que se relaciona com homens e mulheres. Diante da ideia de abrir sua orientação sexual, ele listou seus receios. “Alguém vai achar ruim? Não ligo. Vão parar de me contratar para ser galã? Que bom. Ser eu mesmo era mais importante”, afirma ele (leia a entrevista).
Biografia da televisão brasileira
Ao quebrar o tabu, Gianecchini beneficia-se de um momento histórico propício: temas como a sexualidade fluida e a não binariedade nunca foram tratados de forma tão honesta e didática como atualmente. Além disso, as possibilidades profissionais das estrelas se tornaram mais soltinhas. Após duas décadas, Gianecchini encerrou em 2020 seu contrato com a Globo. O fim da relação ampliou horizontes para o ator, que almejava outros formatos e a chance de produzir: ele tem quatro projetos em negociação com plataformas de streaming. Gianecchini vai inaugurar a fase pós-Globo em agosto, com o vilão da segunda temporada da série Bom Dia, Verônica, da Netflix. A maldade é restrita à ficção. “Ele é o colega mais ‘de boa’ com quem já trabalhei”, conta Tainá Müller, que divide a cena com o ator na série e na peça Brilho Eterno. “Nunca vou esquecer dele dormindo no chão, em cima de uns papelões, em um camarim de externa da série. É muito raro ele reclamar.” O jeito easy-going é uma qualidade que mantém cheia a agenda do ator. Neste ano, ele ainda grava Segundas Intenções, primeira telessérie da HBO Max, que estreia em 2023.
A urgência pela liberdade profissional e pessoal se aprofundou em 2011, com o diagnóstico de um linfoma não Hodgkin. A sentença de seis meses para morrer ou viver trouxe o desejo não só de desfrutar a vida, mas também de olhar mais para o outro. Ele diminuiu o ritmo de trabalho e se presenteou com períodos sabáticos. Reservado, Gianecchini não abre detalhes sobre a vida íntima hoje, mas, até onde se sabe, encontra-se solteiro. Um novo galã está no ar.
Entrevista: “Eu ria dos boatos”
Reynaldo Gianecchini falou a VEJA sobre sua carreira, o interesse obsessivo por sua vida pessoal e seu recente posicionamento político.
O transplante de medula que fez para tratar de um câncer o colocou no grupo de risco na pandemia. Como esse período o afetou? Sou privilegiado, não tive problemas financeiros. Percebi que eu era desconectado da sociedade. Comecei a doar o meu salário. Eu fiquei mais empático e aprendi sobre política e questões sociais, como o racismo.
Por isso começou a se posicionar politicamente? Na Globo, a regra era não falar de política. E eu entendo. Mas chegou uma hora em que precisei me posicionar. O governo Bolsonaro é inegavelmente uma tragédia. Áreas fundamentais para o crescimento de uma nação estão jogadas às traças. Sou filho de professores, uma profissão que amo, e me dói ver como a educação do país está. Isso sem falar do setor cultural. O streaming salvou o cinema brasileiro do Bolsonaro.
No ano passado, Laços de Família (2000) foi reprisada e o público notou detalhes inaceitáveis, como o modo com que a empregada negra é tratada. Hoje revê aquele passado com olhos críticos? Sim, com certeza. Fiz Da Cor do Pecado, hoje um título inadmissível. Parece que é chato, mas, para mudar, precisamos ser chatos. Se 60% da população é negra, então todos os elencos deveriam ter no mínimo 60% de negros. Não trabalho em projetos que não tenham elenco diverso.
Em Laços de Família, sua estreia como galã foi criticada. Como enfrentou o escrutínio? Foi o ano mais difícil da minha vida. Sou uma pessoa reservada, e de repente todos queriam saber sobre mim. Comecei a me fechar. Entrei numa profissão complexa sem estar preparado. Eu me cobrava demais. Se não fosse a Marília, eu teria pirado.
Seu casamento com Marília Gabriela foi alvo de muitos boatos, entre eles de que se tratava de uma relação de fachada, pois o senhor seria gay. Como se sentia? Eu ria dos boatos. É engraçado que especulavam sobre mim e eu era casado, caretinha. Fui muito feliz com a Marília — muito feliz, aliás, sexualmente. Quando nos separamos, eu pensei: já disseram tanta coisa sobre mim que eu tenho crédito para experimentar tudo o que falaram que eu fiz, mas ainda não tinha feito.
Por que se abrir agora sobre sua sexualidade? Eu sou um cara curioso que vive intensamente. Ter relacionamentos com mulheres ou homens me pareceu natural. Chegou um momento em que eu pensei: se eu falar sobre isso, alguém vai achar ruim? Não ligo. Minha empresa vai achar ruim? Não me preocupo. Ninguém vai me contratar para ser galã? Que bom. Ser eu mesmo era mais importante.
Vencer o câncer influenciou seu modo de viver? Quando recebi o diagnóstico, vi que nada mais tinha importância. Meu ego, meus probleminhas, era tudo irrelevante. Eu tinha seis meses para lutar, e o resultado seria viver ou morrer. Entendi a importância de estar presente, de cultivar afetos, e não viver só para o trabalho.
Publicado em VEJA de 11 de maio de 2022, edição nº 2788
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