O escritor Itamar Vieira Junior enfrentará uma prova e tanto a partir desta segunda-feira, 24. A data assinala o lançamento de Salvar o Fogo, seu novo livro — e está longe de ser um evento prosaico no mercado editorial. Depois de arrebatar prêmios e vender mais de 700 000 cópias, uma enormidade para os padrões da literatura nacional, Torto Arado, seu romance de estreia, tornou-se um parâmetro difícil de ser alcançado. O autor sabe disso — e garante não estar ansioso por repetir ou superar seu feito. “Não quero me deixar contaminar por expectativas dos outros. Já cumpri essa etapa, o que eu tinha para escrever já foi escrito”, disse ele a VEJA.
Quem gostou de Torto Arado muito provavelmente vai aprovar Salvar o Fogo, que traz elementos similares em seu enredo. Estão lá a comunidade pobre oprimida por forças maiores, mulheres fortes, o peso da religiosidade e o território como fonte e guardiã da ancestralidade negra e indígena dos personagens. Eis aí um ponto central da trilogia sobre a terra planejada pelo autor: o resgate e a valorização de uma ligação simbiótica entre os humanos e o local onde habitam. “Dentre os direitos mais elementares, o direito ao território está em primeiro lugar. A terra em que habita é indissociável do ser humano”, afirma o autor.
Para Vieira Junior, o território é impregnado de valores, histórias, memórias, cultura e afetos. “Vimos exemplos disso recentemente no noticiário, com inúmeras vítimas de desastres desprovidas não só de suas casas, mas da comunidade, da família, da cultura local, das memórias”, diz. A luta pela posse da terra está no centro de Salvar o Fogo, que se passa no Recôncavo Baiano, na comunidade fictícia de Tapera. Moisés é o filho temporão de Mundinho e Alzira, mas após a morte precoce da mãe passa a ser criado por sua irmã Luzia, com quem mantém uma relação conflituosa. Luzia — a melhor personagem do romance — não se casou e ficou no povoado para cuidar da roça, do irmão e do pai alcoólatra. A maior fonte de renda da família vem do trabalho de Luzia, que é lavadeira num mosteiro.
A sombra da igreja projeta-se sobre o povoado de forma literal, com sua torre dominando a paisagem; e metafórica, com seus dogmas, autoridade moral e proibições. O livro ganha densidade ao apontar como muitos dos males da colonização cristã ainda se fazem presentes na vida das pessoas, sobretudo das mais vulneráveis. Na trama, a igreja não é só a proprietária das terras onde surgiu a comunidade, mas a ex-dona de escravos que segue ditando o modo de vida das pessoas, coibindo festas e manifestações religiosas ameríndias e de matriz africana. “O que as igrejas fazem hoje é ainda uma espécie de colonização em comunidades indígenas e de terreiro”, avalia o autor, que é geógrafo e doutor em estudos étnicos.
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Os pontos em comum dão um ar de segunda temporada ao novo livro, mas cumprem também a função de garantir unidade à trilogia programada. Salvar o Fogo é mais autobiográfico que Torto Arado — dentre as referências, está o alcoolismo do pai do escritor, reverberado em Mundinho. O romance é mais um degrau na escalada pessoal do autor. No topo, ele já sabe quem pretende encontrar: seus mentores Jorge Amado, João Ubaldo Ribeiro, Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz e Guimarães Rosa: “Eu não diria que sou herdeiro, mas gostaria de ser”. O tempo dirá o valor dessa aposta.
Publicado em VEJA de 26 de abril de 2023, edição nº 2838
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