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‘Senti como um trabalho espiritual’, diz brasileiro em Cannes

Em ‘Gabriel e a Montanha’, diretor do único longa do Brasil a ir ao festival neste ano conta a história de seu amigo de infância que morreu no Monte Mulanje

Por Mariane Morisawa, de Cannes
Atualizado em 23 Maio 2017, 15h47 - Publicado em 23 Maio 2017, 15h42
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  • Fellipe Gamarano Barbosa, diretor do único longa-metragem brasileiro a participar do Festival de Cannes, na mostra paralela Semana da Crítica, teve uma relação próxima e pessoal com o protagonista de Gabriel e a Montanha, seu segundo filme de ficção, depois de Casa Grande (2014). Gabriel Buchman foi seu amigo de infância, com quem estudou no ensino fundamental, no ensino médio e na faculdade de economia, e morreu em 2009 no monte Mulanje, em Malaui. “Nunca pensei que fosse uma coisa difícil, macabra, mórbida”, disse ele em entrevista a VEJA, em Cannes. De fato, Gabriel e a Montanha é mais uma bela celebração da vida do seu personagem, interpretado por João Pedro Zappa, que passou quase um ano no oeste da África, disposto a entender melhor a pobreza, dormindo na casa das pessoas e pegando carona. Gabriel tinha pavor de ser um Mzungu, um “estrangeiro”. Mas, no fim, não pôde escapar do fato de ser um.

    Barbosa usa as pessoas reais que hospedaram Gabriel e deram carona a ele, tanto para reencenar algumas passagens de seus últimos dias de viagem quanto para dar depoimentos sobre lembranças que têm dele. Também é importante a presença de Cris (vivida por Caroline Abras), namorada de Gabriel, que passou parte desses últimos meses viajando com ele pelo continente africano. O filme evita santificar Gabriel e constrói um personagem contraditório, por vezes engraçado, e em outras irritante.

    A logística foi de pesadelo: 6.000 quilômetros rodados em um ônibus-caminhão, com uma equipe de 16 a 18 pessoas, durante 70 dias, que incluiu também filmagens no topo do Kilimanjaro, a 5.850 metros de altitude. “Foi o dia mais difícil da minha vida, sem dúvida”, contou o ator João Pedro Zappa sobre a filmagem na montanha. Fellipe Barbosa admitiu ter ficado emocionado quando todos, inclusive o diretor de fotografia Pedro Sotero, asmático, conseguiram chegar ao topo. “Chorei muito”, disse.

    Ao retraçar as últimas semanas da vida de Gabriel, porém, o filme faz também uma investigação da sua morte. Não que ele responda a todas as dúvidas. Muitos mistérios permanecem, seja porque Gabriel mentiu para as pessoas ou porque as pessoas mentiram para Fellipe. Muitas vezes, a história simplesmente não bate, especialmente em relação a seu visto de entrada no Malaui e ao fato de ter subido o Mulanje sem guia, apesar de ter contratado um.

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    Por conta disso, o longa tem um pé no documentário e outro no mistério, com um clima levemente fantasmagórico. Mais do que a vida ou a morte de Gabriel, o diretor disse ter se preocupado com sua passagem de uma para a outra, como contou a VEJA:

     

    Como fazer o filme o ajudou a lidar com essa perda? Gabriel era meu amigo de infância, como sabemos. Mas nunca achei que fosse uma coisa difícil, macabra, mórbida. Nunca vi nada de feio, sempre achei tudo o que a gente estava fazendo muito bonito. E achava bonito falar da morte também, talvez um pouco influenciado pela experiência que eu já tinha tido na África, de viajar por ali e de perceber que eles tinham também uma relação diferente com a morte, algo mais a ver com celebração do que com o luto. Claro que eles ficam tristes, mas aceitam mais a morte como parte da vida. Eu senti no processo que na verdade era um trabalho espiritual mesmo, de ajudar o Gabriel a compreender que ele morreu, por que e como ele morreu e ajudá-lo a fazer a passagem. Porque eu sinto que esse momento é muito delicado, esse momento da morte. É um momento em que o tempo, tal qual a gente o conhece, se dissolve. Ou seja, mesmo se você não é crente, não acredita em Deus, ainda assim acredita que existem uns segundos que separam a vida da morte. Esses segundos, se não são experimentados de maneira linear, como a gente experimenta, podem ser eternos. Minha maior preocupação era essa, que o Gabriel não tivesse entendido que morreu. Porque ele foi dormir naquele ninho achando que ia acordar no dia seguinte e não acordou.

    Você é espiritual? Eu acredito em Deus. O que quer que seja. Certamente acredito que há algo além. Desde a pesquisa, sentia muito que era um trabalho espiritual. Eu penso muito na morte, nesse momento da passagem e como ele é importante, porque pode ser infinito. E como a gente tem de se preparar para ele. Eu sou católico, mas várias pessoas que frequentam centros espíritas me diziam que ele estava com dificuldade de desapegar. Então, eu estava bastante consciente disso. Acreditava muito no filme porque acreditava que a gente estava fazendo um trabalho espiritual bonito, antes de tudo.

    E como tentou fazer isso? Fiz questão de filmar em todos os lugares reais onde o corpo dele esteve presente, nos quartos de hotel, nos picos das montanhas a que ele chegou, com as pessoas verdadeiras que o conheceram. Usamos as roupas dele. A figurinista não gostou muito dessa ideia no começo, mas depois ela entendeu. Porque a mãe quis, a mãe autorizou, a mãe falou que se sentiria honrada se as coisas do filho fossem usadas. Ou seja, mesmo quando houve esse único momento de desconfiança de que haveria algo não tão belo no que a gente estava fazendo, a mãe desconstruiu rapidamente. E não tem ninguém mais soberano que a mãe numa situação como esta. Se ela falou, por favor, use, lógico que eu ia usar, eu queria usar. Então sempre tive uma relação muito saudável com isso. Fui de peito aberto, sem medo, achando que eu estava fazendo algo bom para ele, bom para a família e bom para a gente.

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    Mas não teve algum momento difícil? A montagem, porque tive de encarar o personagem. O personagem se revelou mais difícil do que eu imaginava antes. Eu achava que as contradições iam deixá-lo muito engraçado, muito charmoso, mas eu senti durante a montagem que não era bem assim, que não é um filme para rir. E ele cria uma certa resistência às vezes, porque são tantas contradições… A gente gosta dos personagens contraditórios, mas, como o Gabriel não tem um grande objetivo, o filme se sustenta muito nessa progressiva revelação de camadas por meio dos diversos pontos de vista que contam quem era o Gabriel. Até o fim, a gente não tem nunca a subjetividade do Gabriel. A gente tem sempre a subjetividade dos outros vendo o Gabriel, até o fim, que é o meu ponto de vista um pouco. Muitas vezes a gente fazia a cena, e as pessoas que viveram a cena falavam que não era bem assim.

    O filme fala sobre não querer ser o estrangeiro, querer se diluir, pertencer. Como foi lidar com o fato de ser estrangeiro nessa experiência? Não senti que a gente estava filmando na África, mas que estava filmando com essas pessoas. E elas estavam de corpo e alma aberta para interpretar a si mesmas. Todas, exceto o Lewis, o guia do final, que criou alguma dificuldade, algum obstáculo, por motivos óbvios, uma certa culpa. Ele não resolveu essa questão na cabeça dele até hoje. E dá para perceber que a história que ele conta não bate. A história que ele me conta, que eu filmei, é que o visto do Gabriel estava vencendo, mas a gente sabe que ele tinha visto de 30 dias e que ele tinha acabado de entrar no Malaui.

    Sim, leva um tempo para entender que era uma mentira. Não dá para entender na verdade, não é para ser entendido também. O que dá para sentir fortemente é que no último depoimento do Lewis existe uma contradição entre a ação e a fala. Ele fala que o Gabriel pagou menos da metade do que devia, mas, quando pergunta se ele quer o troco, o Gabriel diz: Você pode ficar com o troco. Ou seja, é uma contradição enorme entre o que ele diz e o que a gente está vendo. Foi uma maneira de sugerir para o espectador que o narrador deste filme não é confiável. Com isso, talvez o espectador mais atento consiga fazer a ponte. Porque o Gabriel dá uma volta para entrar no Malaui e não pagar e ficar com os 30 dias de visto em vez de 7. Ele entra no Malaui e pega uma carona com o Luke, que pergunta quando vai voltar para o Brasil. E o Gabriel responde: Daqui a duas semanas, de Moçambique. Ou seja, ele vai voltar para o Brasil antes de o visto vencer. Matematicamente é impossível ele estar falando a verdade para o Lewis. Ou seja, ou ele mentiu para o Lewis, porque não aguentava mais o Lewis, ou o Lewis mentiu para mim. Certamente tem um ruído aí. E eu me interesso por isso.

    Quando você começou o filme, esperava encontrar respostas mais claras? Esperava, talvez. Engraçado porque eu sempre soube, mesmo sem saber, que o grande mistério da história era a fronteira do Malaui. Porque misteriosamente, acho que pode ter a ver com o frio que afetou a câmera do Gabriel, as últimas fotos dele são todas intercaladas com a foto da placa da fronteira. Como se fosse uma mensagem do além para mim: aqui está o mistério. Porque eu tinha acreditado na história do Lewis, então escrevi que o Gabriel teria pegado um visto de trânsito, que daria sete dias para ele no Malaui, porque era mais barato. Só depois que me dei conta que francês não pagava visto no Malaui, e ele tinha passaporte francês. E eu sei como o Gabriel era zura e que ele era muito esperto, que saberia disso. Ou seja, não tinha sentido ter um visto de trânsito de sete dias se ele tinha o passaporte francês, com que podia entrar por 30 dias. Aí procuramos o passaporte. E no passaporte vi o que filmei, que ele voltou para Zâmbia no mesmo dia, para ter um carimbo no passaporte francês de saída e entrada, e daí voltou com esse mesmo passaporte e economizou US$ 25 no processo (risos). Eu tentei contar essa história para que alguém talvez sacasse que era mentira.

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    E a questão de ser estrangeiro? Eu mudei um pouco desde que fui para lá. Na primeira vez eu era meio Gabriel, sentia que era local. Depois o Gabriel me mostrou que não, que eu era um Mzungu, e ele era o local. Depois o Gabriel mostrou que nem isso, que nem ele era local, nem nunca seria. Mas de fato ele viajava de uma maneira extraordinária. Podem falar que os europeus viajam assim, mas eles ficam em albergue. Ou na casa de um amigo. Não na casa de alguém que conheceu na rodoviária. Isso é muito particular. Mas eu entendo esse espírito do Gabriel porque senti muito isso quando estava lá. Senti uma ligação íntima muito forte: comida, futebol, ginga, música, dança. E uma pureza muito grande, uma simplicidade. Tem muitos lugares onde você viaja, viaja e não vê nenhuma construção. É uma conexão que o brasileiro sente com a África.

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