Sociólogo investiga faceta de burocrata do poeta Drummond
Em volume de ensaios, Sergio Miceli expõe como o emprego público e a relação com o poder moldaram o escritor — mas não macularam sua obra excepcional
“Tive ouro, tive gado, tive fazendas. / Hoje sou funcionário público.” Os versos de Carlos Drummond de Andrade no poema Confidência do Itabirano tanto revelam como escondem dados biográficos. Eles demonstram as ligações do autor com sua terra, Minas Gerais, relembram agruras financeiras familiares, mas camuflam algo crucial para a biografia do poeta. Em 1940, quando o texto foi publicado, Drummond não era um simples “barnabé”, modo pejorativo de se referir aos servidores pouco graduados: ocupava um posto-chave na política cultural do Estado Novo (1937-1945), a ditadura comandada por Getúlio Vargas. Na época, acumulava a chefia de gabinete do Ministério da Cultura, a diretoria do Departamento Nacional de Educação e a presidência do Conselho Nacional de Educação. Em duas linhas, eis uma pequena síntese da obra drummondiana, que consegue como poucas denunciar mazelas sociais, crises existenciais, remoer memórias; mas muitas vezes dissimulando sentimentos e intenções.
Ter sido alto funcionário público por quase toda a vida não constitui demérito para a carreira literária de um dos grandes poetas nacionais. Mas é um dado inescapável na compreensão de sua obra. “Esse fato vinha sendo ignorado ou relegado a segundo plano nas críticas e interpretações existentes”, afirma o sociólogo e ensaísta Sergio Miceli. Em Lira Mensageira: Drummond e o Grupo Modernista Mineiro”, ele apresenta três conjuntos de ensaios. O primeiro demonstra por meio de extenso levantamento bio e historiográfico como Drummond e outros autores mineiros tiveram de se aliar ao Estado para poderem progredir profissionalmente e como artistas. “A despeito de estilos pessoais de conduta e de personalidade, nenhum deles estava em condições de se esquivar das engrenagens de mobilidade”, escreve o ensaísta. As outras duas partes contêm textos sobre o modernismo paulista e sobre o reordenamento da classe política na Era Vargas. A linha que amarra a obra é a quase inexistente fronteira entre as elites política, econômica e intelectual — que muitas vezes se confundiam nas mesmas famílias ou pessoas.
Lira mensageira: Drummond e o grupo modernista mineiro
Oriundo de um clã de fazendeiros falidos, Drummond viu os pais dilapidarem suas posses, inclusive o casarão azul dos bisavós, “talvez a mais imponente das casas de Itabira”. O pouco que sobrou foi destinado aos dotes das irmãs do escritor. Impossibilitado de cursar direito — caminho mais seguro para um emprego público — por ter sido expulso do colégio, o jovem Drummond ingressou na faculdade de farmácia, que o dispensou de apresentar o atestado de conclusão do colegial. A formação heterodoxa para um escritor foi quase sempre tratada como episódio anedótico em sua biografia. Mas, para Miceli, o diploma de nível superior, ainda que não fosse de bacharel em direito, “era indispensável à rapaziada atenta às oportunidades de acesso à elite mineira”.
Assim, Drummond e outros jovens escritores que costumavam se reunir no Café Estrela, em Belo Horizonte — como Cyro dos Anjos, Pedro Nava, e João Alphonsus —, valeram-se de ferramentas sociais arraigadas na sociedade brasileira de então e de hoje: o nepotismo e as amizades com pistolões. “Tento reconstruir a elite política da época para mostrar que esse local da gênese é determinante de todo o resto. Drummond e os outros escritores não tinham saída, mas o interessante na obra dele é a resposta criativa a esse contexto político e social”, disse Miceli a VEJA (leia a entrevista).
Drummonianas: variações em torno de temas e poemas de Carlos Drummond de Andrade
Quando o livro Sentimento do Mundo foi lançado, em 1940, nenhum intelectual desconhecia a repressão do governo — prisões, torturas, censura. Mas, mesmo resguardado no protetorado do influente ministro da Educação, o mineiro Gustavo Capanema, o autor lançou seu petardo poético e político com apenas 150 edições. Para Miceli, um rasgo crítico, ainda que tímido, “assinado por homem forte da política cultural oficial”. Cinco anos depois, já fora do governo, Drummond publica A Rosa do Povo, obra que dobra a aposta no realismo e dá à poesia o caráter “de libelo, de coletivo”. Carlos poderia ter sido apenas um diligente burocrata, como muitos outros aspirantes a artista aboletados no governo. Mas, gauche na vida, foi Drummond.
Publicado em VEJA de 26 de janeiro de 2022, edição nº 2773
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