Por mais que a gente se empenhe em ser criativo, a realidade consegue ser ainda mais surpreendente do que a ficção. Confesso que a essa altura da vida, depois de ter atravessado tantos altos e baixos, com grandes sucessos na TV e perdas irreparáveis na vida pessoal, jamais imaginei que fosse experimentar um medo que nunca havia sentido antes. Pois a pandemia me trouxe um temor constante do desconhecido e me impôs uma rotina regrada e privada de gente ao redor. Há exatamente um ano não ponho os pés na rua e passo os dias isolado, beirando a neurose. Sigo à risca a cartilha antivírus. Fora a minha mulher (Elisabety, com quem está casado há 43 anos), todas as pessoas com quem precisei ter contato em casa neste período entraram totalmente cobertas: macacão esterilizado, proteção para o sapato, luva, máscara, face shield. A única exceção em meio ao exílio forçado aconteceu recentemente, quando chegou minha vez de ser vacinado e fui ao posto de saúde. Minha sensação e a dos outros que ali estavam era de ganhar a Copa do Mundo.
Diante dessa loucura, o meu ofício vem sendo uma valiosa válvula de escape. É, na verdade, o que me ajuda a ficar são. Não há qualquer pressão da Rede Globo, com quem tenho contrato até o segundo semestre de 2021, mas continuo escrevendo. Embora duas novelas minhas estejam sendo reprisadas (Laços de Família e Mulheres Apaixonadas), não vou mais fazer o gênero. É preciso ser um atleta para aguentar a maratona de criar um folhetim. Superei essa fase, mas a cabeça segue a mil por hora, e é aí que reside o combustível para enfrentar esses momentos praticamente sem contato humano. Venho pincelando uma sequência para a minissérie Presença de Anita e esboçando um projeto que resgata o formato do teleteatro. Ainda estou debruçado sobre minha autobiografia, que mescla fatos marcantes dos meus 70 anos de TV — mesmo tempo em que o veículo está no ar no Brasil — e da minha trajetória pessoal. Não há como deixar de tocar na morte de três dos meus cinco filhos. É uma dor pungente, que não tem consolo e que me acompanha diariamente. Não perdi ninguém próximo na pandemia. Vi, porém, o sofrimento descomunal de vários conhecidos que experimentaram essa dor, e a reconheço.
Não é fácil manter-se longe dos filhos, netos, amigos e não ver a rua nem o mundo a que estamos acostumados. Na adolescência, cheguei a ficar meses recluso em um internato, mas nunca tinha passado um período tão longo em isolamento. A gangorra de emoções, ora em cima, ora embaixo, é inevitável. Tem instantes em que aflora uma grande esperança, em outros você acaba empurrado para o pessimismo. Tento me fixar no horizonte pós-coronavírus, em uma equação que envolve sensações variadas diante do noticiário. Particularmente me indigna o atraso na vacinação e o descaso de quem insiste em pôr tudo a perder promovendo festas, sem considerar o bem-estar coletivo.
Aos 88 anos, é inevitável não me revoltar com o fato de o tempo que me resta estar sendo sugado por uma pandemia. Claro que gostaria de estar fazendo 30 anos de idade, mas me atenho ao terreno do possível e encontro nele desejos mais modestos, porém prazerosos. Quero de novo uma vida na qual possa fazer planos. Adoraria festejar o Natal, o réveillon e ter uma festa de aniversário cercado de minhas filhas, meus netos e de bons amigos. Todo mundo sabe que sou um apaixonado pelo Leblon, o bairro no Rio de Janeiro onde moro e que tanto retratei em minhas novelas. Não vejo a hora de poder caminhar por suas calçadas, observar as pessoas indo e vindo, sentar em uma livraria para tomar um café, nada muito complicado. Em poucas palavras, sonho com a minha liberdade de volta.
Manoel Carlos em depoimento dado a Sofia Cerqueira
Publicado em VEJA de 17 de março de 2021, edição nº 2729