Há cinco anos, eu tinha um bom cargo em uma agência de publicidade — trabalho que me ajudou a conquistar uma vida fora da periferia onde cresci, no Jardim Gramacho, em Duque de Caxias, Baixada Fluminense. Apesar da estabilidade, chegou um momento em que tive de encarar meus sonhos. Entrei na sala do meu chefe, coloquei a carteira de trabalho na mesa dele e disse: “Sou um artista, não me encaixo mais aqui”. Expliquei meus planos e ele me apoiou. Eu queria trabalhar com a escrita, mas sabia que não seria fácil — e não foi. Me reinventei, passei por necessidades financeiras, mas superei os obstáculos e hoje vivo das palavras. Sou autor de livros, entre eles o best-seller Homens Pretos (Não) Choram, tradutor e roteirista de séries e filmes. Neste ano, fundei a editora Escureceu, formada por profissionais pretos e voltada para a publicação de livros clássicos de autores negros esquecidos ou embranquecidos pela história.
Aprendi a ler com minha mãe, que é professora, quando eu tinha 3 anos. Na escola, a biblioteca era meu lugar de refúgio e de liberdade. Eu sofria bullying por ser diferente — mais tarde descobri ser gay, algo que, pelo jeito, as outras crianças já sabiam. O interesse por ler me fez cursar jornalismo. Consegui uma bolsa em uma faculdade particular na Zona Sul do Rio e lá, ao notar que eu era o único estudante preto — que mal tinha dinheiro para pegar o transporte público —, entendi a frase da filósofa Lélia Gonzalez: “A gente não nasce negro, a gente se torna negro”.
Outra ficha caiu quando percebi a falta de clássicos de autores pretos nas livrarias — e que os poucos publicados apresentam uma narrativa de sofrimento. Foi então que tive a ideia do Clube da Caixa Preta, uma sociedade de leitura com assinatura mensal de 8 a 10 reais. Ali, fazemos um garimpo literário. Resgatamos contos clássicos inéditos no Brasil provando que nossa história tem, sim, fatos tristes, mas a literatura negra é riquíssima, feita de muitos temas.
A demanda pelo clube evoluiu e os leitores queriam mais que um conto por mês. Nasceu assim a editora Escureceu. Nela produzimos edições de luxo, com capas elaboradas e brindes que acompanham desde romances inéditos no Brasil até clássicos nacionais, como Clara dos Anjos, de Lima Barreto. Por enquanto, trabalhamos de forma pontual, com livros feitos sob demanda via campanhas de financiamento coletivo. A média de arrecadação é de 60 000 reais por título. Assim, as obras saem da gráfica vendidas. Estamos produzindo agora A Morte do Mago (1932), de Rudolph Fisher, o primeiro romance policial americano escrito por um homem negro e com personagens também negros.
Empreender não estava nos meus planos. Na periferia, mal nos ensinam matemática, quanto mais empreendedorismo e educação financeira. Para tocar meu negócio, eu me amparo em profissionais de diferentes áreas, como contabilidade e administração. Também prezo por trabalhar apenas com profissionais pretos. Há quem diga que é difícil encontrá-los, mas rebato: eles existem, são qualificados e estão em busca de oportunidades. Recentemente, traduzimos um conto do russo Alexander Pushkin (1799-1837). Demorei dois meses para achar esse tradutor, mas encontrei, na Bahia, e fizemos duas traduções, uma literal e outra afrocentrada — reimaginando a história de um ponto de vista africano. Para criar uma rede de pessoas negras no mercado editorial, desenvolvemos um banco de dados, que hoje conta com cinquenta nomes, entre tradutores, revisores, ilustradores e outros. É comum que editoras me peçam indicações de profissionais. Faço isso, pois sei que sou um ponto fora da curva. Quem nasce na favela acha que nunca sairá dali, pois os sonhos são soterrados. Mas a literatura me salvou — e quero que ela alcance cada vez mais pessoas.
Stefano Volp em depoimento dado a Raquel Carneiro
Publicado em VEJA de 17 de novembro de 2021, edição nº 2764