Surge na Suécia a primeira biblioteca dedicada a livros proibidos
Nestes tempos estranhos, trata-se de uma poderosa homenagem à liberdade de expressão (não aquela que incita crimes)
Há dois milênios, a dinastia Qin tentou destruir todas as obras baseadas no pensamento de Confúcio com a finalidade de esmagar a filosofia que se opunha aos ditames da nova classe dominante. No Ocidente, quando a Igreja Católica consolidou seu poder, foi elaborado um catálogo de livros considerados heréticos, lascivos ou ofensivos à doutrina: o controverso Index Librorum Prohibitorum. A Alemanha da década de 30 é lembrada tanto por seus suntuosos desfiles ao ritmo do passo de ganso quanto pelas fogueiras feitas de livros tidos como, na opinião dos nazistas, arte degenerada. Embora possa parecer trivial, o pleno acesso às manifestações intelectuais e artísticas é um fenômeno relativamente novo na história da humanidade e, ainda hoje, não totalmente consolidado. A censura, costuma-se dizer, nasceu um segundo depois da literatura e, desde então, nunca mais a abandonou. Para que o mundo não se esqueça disso, a Suécia, país que cultua a liberdade de expressão (não aquela que incita crimes ou violência), acaba de inaugurar uma biblioteca pública dedicada a livros proibidos.
Batizada de Dawit Isaak, em homenagem ao homônimo jornalista encarcerado há vinte anos por se opor ao regime da Eritreia, pequeno país no nordeste da África, a nova biblioteca tem mais de 1 600 livros em seu acervo — todos eles censurados ou banidos em algum momento em algum lugar do planeta, incluindo obras cujos autores foram presos, exilados ou jurados de morte. Muitos trabalhos estão disponíveis no idioma original, além da versão em inglês e em mais três línguas escandinavas: sueco, norueguês e dinamarquês. Localizada em Malmö, cidade da Suécia com pouco mais de 300 000 habitantes, o endereço está aberto a todos que queiram ler, pesquisar e até mesmo levar emprestado um exemplar.
De forma geral, obras são retiradas de circulação quando ofendem os valores, a cultura e a doutrina de uma sociedade ou ainda, no caso de uma biografia, simplesmente porque alguém não quer que ela seja publicada. O maior problema é que, por ser subjetiva, a censura pode se tornar arma de um regime autoritário ou de uma sociedade extremamente conservadora, que assim acaba tachando de inapropriado qualquer romance ou comédia. O francês Gustave Flaubert, por exemplo, foi a julgamento em 1857 por ter escrito a história fictícia de uma adúltera frívola, Madame Bovary, cujo comportamento atingia em cheio a burguesia parisiense.
Na Biblioteca Dawit Isaak, cada título traz informações sobre a época e o local em que foi subtraído. O acervo está em constante expansão, uma vez que seus curadores continuam em busca de aquisições, além de aceitar doações. Músicas, histórias em quadrinhos e filmes serão aos poucos adicionados à coleção. Na Suécia, a lei claramente estabelece que bibliotecas públicas devem promover o desenvolvimento da democracia e contribuir para a disseminação de conhecimento e a formação livre de opiniões. Segundo a diretora Emelie Wieslander, que conversou com VEJA, “se não incluíssemos livros banidos e censurados nessa conta, não estaríamos cumprindo a nossa missão”.
Talvez o exemplo mais emblemático de intolerância contemporânea seja o banimento de Os Versos Satânicos, do escritor britânico de origem indiana Salman Rushdie. Em 1989, um ano após a publicação da obra, o aiatolá Khomeini, então líder religioso do Irã, emitiu uma sentença de morte (o decreto conhecido como fatwa) contra Rushdie por ofensas ao islamismo supostamente contidas nos versos. A ordem de execução nunca foi retirada e até hoje Rushdie recebe proteção do Reino Unido e dos Estados Unidos.
Mesmo que um livro não tenha sido censurado em seu país de origem ou que a proibição já esteja suspensa, ele poderá ser encontrado nas prateleiras do espaço sueco. Assim, títulos inofensivos como a série infantojuvenil Harry Potter — um dos maiores sucessos da história — também estão presentes porque foram deliberadamente retirados da lista de leitura escolar em alguma cidade ou país por autoridades pedagógicas ou religiosas. Entre as estrelas da coleção estão A Revolução dos Bichos, de George Orwell, possivelmente a maior crítica aos rumos da Revolução Russa de 1917, e o best-seller O Alquimista, de Paulo Coelho, cuja circulação foi barrada no Irã em 2011 porque o editor da obra no país foi considerado inimigo de Estado. Esse e outros títulos do escritor brasileiro voltariam a ser permitidos assim que migrassem para outro editor.
Bibliotecas de obras proibidas não são incomuns, existem há séculos. “A diferença é que geralmente elas não podem ser acessadas pelo público em geral”, diz Ivan Paganotti, pesquisador da Universidade Metodista de São Paulo. De fato, na Idade Média, antes da invenção da prensa moderna, monges traduziam, copiavam e guardavam textos da Antiguidade — incluindo aqueles de conteúdo restrito —, conforme descreve o autor italiano Umberto Eco (1932-2016) em seu livro O Nome da Rosa, obra de ficção, porém baseada em fatos reais. Na verdade, o ideal seria que não precisassem existir acervos censurados — embora, insista-se, o trabalho intelectual, em qualquer plataforma ou estilo, sempre desagradará a alguém em algum lugar. Enquanto for assim, numa linha que parece se estender sem fim, haverá necessidade de mais prateleiras em Dawit Isaak e em outras bibliotecas de livros proibidos mundo afora. A inteligência da civilização agradece.
Publicado em VEJA de 27 de janeiro de 2021, edição nº 2722