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Traídos pela memória

Em 'Homecoming', estreia de Julia Roberts no mundo das séries do streaming, a investigação da mente humana toma a forma de uma trama de paranoia corporativa

Por Marcelo Marthe Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 16h26 - Publicado em 9 nov 2018, 07h00

Com cabelos maltratados, rugas gritantes e lábios rijos, Heidi Bergman (Julia Roberts) é a tradução de uma alma resignada com seu destino medíocre. Na lanchonete de quinta categoria de uma cidade praiana, a garçonete aborda mais um cliente de aspecto cinzento. Mas o homenzinho tímido não deseja o peixe ensopado de praxe: Thomas Carrasco (Shea Whigham) é um fiscal do Departamento de Defesa dos Estados Unidos e está ali para investigar fatos obscuros ocorridos em um projeto privado patrocinado pelo governo, no qual ela tivera papel-chave. Heidi nega relação com o experimento. Na cena anterior da série Homecoming, no entanto, a encarnação profissional prévia de Heidi já ficara bem estabelecida: quatro anos antes, ela era a psicóloga de um centro de apoio para ex-soldados com stress pós-traumático. Em tese, sua tarefa consistiria em ajudar veteranos a “se familiarizar com a vida civil em ambiente monitorado”. Na prática, não era bem assim — embora talvez ela nem desconfiasse dos propósitos para os quais era empregada. No thriller produzido pela Amazon e recém-lançado na plataforma Prime Video, o exercício de decifrar como uma Heidi descambou na outra descortina uma investigação de amplitude surpreendente sobre a mente humana.

Em Homecoming, mais um rosto inescapável do cinema vem engrossar o estouro da boiada de Hollywood rumo às pradarias criativas da TV e, agora, do streaming. Aos 51 anos, Julia Roberts tardou para chegar ao pedaço, mas o faz com timing feliz. A série é a versão com imagens de um cultuado podcast de suspense, narrado por meio de trechos de ligações e conversas fictícias. Sob a direção de Sam Esmail, da excelente Mr. Robot, esta radionovela da internet se converte em uma algaravia de vozes e imagens não menos envolventes. Em dez episódios curtos, Esmail revela-se um hábil manipulador da tensão.

O resultado é a conjunção improvável mas viciante de thriller de paranoia com comédia farsesca (a verborragia canastrona do chefe de Heidi, vivido por Bobby Cannavale, resume esse espírito). Como em Mr. Robot, Esmail explora o clima conspirativo no meio corporativo-governamental. Mas Homecoming vai um pouco além. Entre a garçonete caída e a terapeuta eficiente interpretadas por Julia Roberts há uma fratura psicológica exposta — e exacerbada em seus sentimentos contraditórios pelo soldado negro Walter Cruz (Stephan James). O que se julga, enfim, é se um traço que nos diferencia dos outros animais — a memória — é uma bênção ou um fardo.

Publicado em VEJA de 14 de novembro de 2018, edição nº 2608

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