Compenetrados, Lady Sarah Churchill, duquesa de Marlborough, e o jovem general Masham executam uma dança complicada no meio do salão de baile — meio cavalgada lenta, meio rockabilly estilizado. Em sua cadeira de rodas, a rainha Anne se desfaz em lágrimas de comoção, de inveja e, sobretudo, de ciúme: Anne ama Sarah, e Sarah ama Anne, mas esse é o tipo de momento que elas nunca poderão compartilhar, porque as crises de gota, a obesidade e as dezessete gestações malsucedidas tornaram a rainha quase inválida — e porque, bem, pareceria (ainda mais) absurdo. De maneira que Anne, amuada, exige ser retirada do salão e acaba com a festa. Para a plateia, entretanto, ela mal começou: todos os 119 minutos de A Favorita (The Favourite, Inglaterra/Irlanda/Estados Unidos, 2018), que estreia no país nesta quinta-feira, são um deleite — peculiar e não raro até bizarro, como sempre no cinema de Yorgos Lanthimos, mas também de inesperado empuxo emocional. Em seu terceiro filme de língua inglesa, depois de O Lagosta e O Sacrifício do Cervo Sagrado, o cineasta grego põe três atrizes soberbas em uma história que, por mais exóticos que pareçam seus sobretons, é bastante fiel ao que se sabe sobre o reinado de Anne na Inglaterra, entre 1702 e 1714 — em especial a cruenta disputa de poder que se instalou quando a jovem Abigail Hill (Emma Stone) tramou para suplantar Sarah (Rachel Weisz) nas afeições de Anne (Olivia Colman) e, portanto, também no comando do país, que a duquesa de Marlborough vinha exercendo de fato.
A Favorita cintila com a inteligência, o humor cáustico e a inventividade fervilhante de Lanthimos: das cenas filmadas com a câmera olho de peixe, que distorce a imagem, aos figurinos (branco e preto para as mulheres da corte, tecido de jeans para os serviçais e, para os homens, cores vistosas e cascatas de perucas), nenhum detalhe escapa à sua vigilância criativa, e todos contribuem para tirar a plateia daquela zona confortável do drama de época e lançá-la numa corrente imprevisível.
Na direção de atores, porém, Lanthimos costuma ser lacônico. Faz o elenco encenar o texto durante algumas semanas, para matar até a última inibição. Mas não discute psicologia, não debate motivações e não elabora, por acreditar que intelectualizações excessivas tolhem os atores. Em geral, diz “hmmm” (não gostou), faz um sinal de positivo (gostou) ou, com sorte, sorri (adorou). E, no entanto, suas três atrizes afirmam que poucas vezes se viram tão amparadas por um roteiro, e tão seguras e livres em um set para aventurar-se em suas personagens. Olivia Colman, em particular, é um assombro: prestes a encarnar outra rainha, Elizabeth II, na terceira temporada de The Crown, ela renuncia a qualquer ego no retrato da infantil, carente, patética e às vezes formidável Anne. Não serão muitas as ocasiões, também, em que o espectador terá visto relações femininas tratadas com tanta perspicácia: da subserviência à amizade, da lealdade à paixão, da sedução carnal à intimidação e à dissimulação, é larguíssimo o espectro de ligações entre Anne, Sarah e Abigail (e também Emma Stone brilha como a arrivista de ar inocente que tanto a rainha quanto sua poderosa duquesa subestimaram).
É raro, na história, que três mulheres tenham tido tanto poder político nas mãos, e simultaneamente. E é quase tão raro que, no cinema, três atrizes dividam a cena com papéis tão fortes, e de importância equivalente. Que A Favorita estreie neste momento é, em grande parte, questão de casualidade: havia uma década que Lanthimos burilava o roteiro, até que ele estivesse de seu agrado. Por si só, também, o filme de Lanthimos desmonta teorias bizantinas como a do “lugar de fala” (que preconiza que cabe às mulheres falar de mulheres, aos negros falar de negros, e assim por diante) e reafirma que a sensibilidade humana, venha de onde vier, é igualmente transformadora.
Publicado em VEJA de 23 de janeiro de 2019, edição nº 2618
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