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Um novo olhar para a fotografia

Livro de Leão Serva mostra como os registros de guerra conversam com os desenhos e pinturas do Renascimento e da Antiguidade

Por Fábio Altman Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 7 abr 2021, 23h59 - Publicado em 7 abr 2021, 15h46

Na introdução de um pequeno clássico, Medo, reverência, terror, de 2008, compilação de ensaios em torno dos movimentos políticos de mãos dadas com suas representações artísticas e iconográficas ao longo do tempo, o historiador italiano Carlo Ginzburg mergulhou, com inédita criatividade, nas ideias do alemão Aby Warburg (1866-1929), um renascentista pouco conhecido e muitíssimo influente. Assim: “Numa conferência realizada em Hamburgo, em outubro de 1905, Warburg comparou um desenho de Dürer representando a morte de Orfeu a uma gravura sobre o mesmo tema proveniente do círculo de Mantegna. O desenho deriva da gravura: mas esta, por sua vez, e por intervenções que não são mais rastreáveis, trazia no gesto de Orfeu moribundo ressonâncias de um gesto que já se encontrava nos vasos gregos, como observou Warburg: ‘uma fórmula de páthos (Pathosformel) arqueologicamente autêntica’. Segundo ele, não se tratava de um caso isolado: a arte do início do Renascimento recuperava da Antiguidade os ‘modelos de uma gestualidade patética intensificada’”.

E se a constatação de Warburg, a de uma constância de modelos de representação artística que se repetem, séculos atrás de séculos, infinitamente, fosse aplicada à fotografia de nosso tempo, o que resultaria? A resposta está em A Fórmula da Emoção na Fotografia de Guerra (Edições Sesc SP, 204 páginas, 69 reais), do jornalista Leão Serva, diretor de jornalismo da TV Cultura e ele mesmo veterano correspondente de conflitos armados. Posto de outro modo, Serva estabeleceu uma pergunta original: o que, nas imagens de guerra, atrai a atenção das pessoas? A resposta: muito provavelmente, o mesmíssimo Pathosformel que costurava outras modalidades artísticas na permanente busca por entender as dores da civilização. Em minucioso levantamento, nascido como tese para a PUC-SP, apresentada em 2017, Serva listou – e esmiuçou – uma coleção de registros de guerra, muitos deles conhecidíssimos, que parecem beber de telas do passado. Há um fascinante fio condutor. O guia de Warburg, que serviu a Ginzburg, funciona também com o fotojornalismo.

Dois exemplos ajudam a pavimentar o raciocínio. A conhecida série de fotografias de Che Guevara assassinado na Bolívia, em 9 de outubro de 1967, remetem à Lamentação sobre o Cristo Morto, de Andrea Mantegna, pintado no final do século XV. Ponha-se lado a lado a imagem dos soldados cravando a bandeira dos Estados Unidos em Iwo Jima, em 1945, e O Erguimento da Cruz, de Rembrandt, tela a óleo de 1633, e as similaridades parecem gritar. O adesivo a colá-las é o Pathosformel que Serva emprestou de Warburg. Embora não seja impossível, evidentemente, que para além do apego imediato a gestos universalmente compreensíveis, daí o impacto das imagens, os fotógrafos terem “armado” as cenas. No caso de Iwo Jima a esperteza foi depois confirmada.  No caso de Che Guevara é certo que a cena foi mexida, de modo a enobrecer a composição.

Catalogar fotografias de guerra em categorias poderia subtrair a emoção a que se refere o título do livro de Serva. Dá-se o contrário, a rigor, na percepção de que uma foto de Robert Capa muitas vezes pode dizer o mesmo que uma imagem rupestre de cavernas pré-históricas – e, nesse aspecto, Warburg andou na mesma estrada do estruturalismo de Claude Lévi-Strauss (1908-2019), das ideias de Noam Chomsky, pensadores afeitos a buscar constantes na caminhada humana. Uma boa argumentação contra o edifício construído por Warburg, adaptado por Serva às câmeras fotográficas, diria que gritos, mãos para cima, rostos cobertos, gestos de desespero, esgares, isso tudo que despontava na Antiguidade e reaparece nas fotos, não passa de resposta inata do ser humano ao pavor. Sim, é verdade, mas Serva, sempre colado a Warburg, oferece vacina às críticas: o historiador alemão entendia perfeitamente essa característica humana, demasiadamente humana, que foi cuidadosamente anotada por Charles Darwin (1809-1882) em A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais, de 1872. “Finalmente um livro que me ajudou”, escreveu Warburg. Uma coisa, portanto, seria a reação instintiva, pura e simplesmente – outra é desenhar, pintar e fotografar como meio de comunicação universal, em idioma cujo vocabulário é feito de imagens.

Che Guevara assassinado na Bolívia (1967) e Lamentação sobre o Cristo Morto, de Andrea Mantegna, pintado no final do século XV
Che Guevara assassinado na Bolívia (1967) e Lamentação sobre o Cristo Morto, de Andrea Mantegna, pintado no final do século XV (Bettmann/CORBIS/Reprodução)

Nos últimos anos de vida, lembra Serva, “Warburg dedicou-se a criar um conjunto de imagens significativas da história da iconografia humana, que ele pretendia que fosse ao mesmo tempo um roteiro, como uma recapitulação, de seus principais temas de estudo, e um “atlas ilustrado” de imagens (no sentido de uma enciclopédia visual organizada espacialmente). O Atlas de Warburg procurava estabelecer uma cartografia de elementos visuais determinados, que se estabeleceram como modelos ou “fôrmas” para a expressão visual humana ao longo dos séculos.” Serva, sem a mesma ambição, naturalmente, fez uma antologia de fotografias de guerra que dialogassem com o acervo original investigado por Warburg. O resultado é cativante, atalho para olhar de um modo diferente para as cenas de combate, de perdas, mortos e feridos. Diz Serva: “Buscar  Pathosformel na fotografia de guerra não se revelou um garimpo por uma pedra filosofal ou algo assim impossível. Ao contrário, elas estavam pulsando em seu dinamismo ao mesmo tempo arcaico e contemporâneo”. Arcaico e contemporâneo como o período no qual vivemos, o da pandemia, que ceifa vidas como em conflitos armados. Não por acaso, fotógrafos como o brasileiro André Liohn, um dos mais premiados fotojornalistas de guerra do mundo – que tem uma foto de sua autoria, na Líbia, em 2011, posta ao lado de A Morte de Orfeu, de Albert Dürer na capa de A Fórmula da Emoção…, dadas as cabais semelhanças  hoje vira suas lentes para a tragédia cotidiana no Brasil de mais de 4 000 mortes ao dia.

Não resta dúvida, depois da leitura do trabalho de Serva: a fotografia não inventou a feiura do mundo. Ou, como anotou Susan Sontag (1933-2004) em Sobre fotografia: “Ninguém jamais descobriu a feiura por meio das fotos. Mas muitos, por meio das fotos, descobriram a beleza. Salvo nessas ocasiões em que a câmera é usada para documentar, ou para observar ritos sociais, o que move as pessoas a tirar fotos é descobrir algo belo. (O nome com que Fox Talbot patenteou a fotografia em 1841 foi calótipo: do grego kalos, belo). Ninguém exclama: ‘Como isso é feio, tenho de fotografá-lo. Mesmo se alguém o dissesse, significaria o seguinte: ‘Acho essa coisa feia… bela’”.

Capa do livro
Capa do livro de Leão Serva (//Reprodução)
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