Uma arte sem “lugar de fala”
A retrospectiva de Tarsila do Amaral oferece a chance não só de ver 120 quadros da artista, mas de refletir: ela resistiria ao puritanismo da arte de hoje?
Depois de dois anos de produção febril, nos quais surgiram suas célebres criações antropofágicas, como Abaporu (1928) e Urutu (1928), Tarsila do Amaral adentrou os anos 1930 em paralisante vazio existencial — e criativo. O crash da Bolsa de Nova York dilapidou a fortuna de sua família, pertencente à elite cafeeira paulista. No amor, outra rasteira: seu marido e parceiro na vanguarda modernista, Oswald de Andrade, a trocou pela endiabrada Pagu. Por um ano, tudo que saiu do cavalete da deprimida Tarsila foi uma única tela, intitulada Composição (Figura Só). “É um ponto de inflexão: suas pinceladas ganham tons mais soturnos e melancólicos”, diz o diretor artístico do Masp, Adriano Pedrosa. O interesse pela mostra Tarsila Popular, com inauguração prevista para a sexta-feira 5 no museu paulistano, já se justificaria somente pela chance de vislumbrar quadros que se tornaram emblemas da arte brasileira ao lado de outros raramente vistos em público — como é o caso do próprio Figura Só, com a enigmática mulher cuja imensa cabeleira balança ao vento em meio a uma paisagem inóspita. Mas o apanhado de 120 obras ainda oferece material para uma especulação momentosa: se fosse submetida aos critérios da arte de hoje, Tarsila poderia ser Tarsila?
A resposta mais provável é: não. No receituário que prevalece entre os curadores de hoje, um artista não é mais avaliado pelo valor estético de sua produção em si: contam também as credenciais que o habilitariam a ser um tradutor da realidade que se propõe a retratar, incluindo sua raça, gênero e classe social. Imposições daquilo que se conhece, enfim, por “lugar de fala”: em última instância, só um artista negro teria autoridade para retratar a realidade dos negros e apenas as mulheres pobres poderiam celebrar os valores das mulheres pobres. A obra de Tarsila é o melhor antídoto contra essa castração da liberdade artística. Ela (como, aliás, toda a linha de frente do modernismo brasileiro) era oriunda da mais legítima elite de linhagem de sangue — a elite patriarcal, para usar um termo que horroriza tanta gente hoje. Era branca, formada nas melhores escolas da Europa e frequentadora de círculos exclusivos (não vale alegar que empobreceu após a crise de 1929: o essencial de sua obra já tinha sido feito àquela altura). No entanto, é inegável que nenhum outro artista foi tão feliz em representar aquilo que os modernistas chamavam de “brasilidade” — o folclore, as festas populares, as cores do interior caipira. Sim, Tarsila viveu a infância numa fazenda e, adulta, rodou de Minas à Amazônia atrás do “Brasil profundo”. Mas nunca passaria no teste do “lugar de fala”: era uma simpática dondoca de modos afrancesados, não uma mulher popular. Seria reprovadíssima, hoje.
É curioso constatar como, muito antes de a nova cartilha puritana da arte se impor, Tarsila já pagava o preço de ser quem era. Mesmo no auge da carreira, era acusada de retratar um Brasil que não conhecia, nem seria seu de direito. Um dos curadores da retrospectiva do Masp — a qual, aliás, não resiste a incidir nas mesmas análises de classe, raça e afins tão ao gosto da crítica contemporânea — acredita que há um tanto de preconceito, até de misoginia, nesses ataques à pintora. “São cobradas de Tarsila revoluções e coerências que não se cobram de seus pares masculinos, como Volpi e Vicente do Rego Monteiro”, diz Fernando Oliva.
Há, ainda, uma discussão mais velha que andar para trás: a controvérsia sobre se há algo de original e genuinamente brasileiro na sua obra, ou apenas emulação de influências que ela sofreu na Europa. De fato, obras como Abaporu, Antropofagia ou Urutu têm elementos do primitivismo e do cubismo em voga no período. Figura Só navega obviamente pela pintura metafísica do italiano Giorgio de Chirico (1888-1978). Tarsila, no entanto, conseguiu o feito de estar sintonizada com seu tempo e interpretar o Brasil por lentes só suas. Não há o que falar sobre seu lugar na arte nacional.
Publicado em VEJA de 10 de abril de 2019, edição nº 2629
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