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‘Viúva de Ferro’: uma trama distópica (e não-binária) sobre a China

Best-seller nos Estados Unidos, livro de estreia de Xiran Jay Zhao mistura mitologia e história em trama fantástica que fala de questões de gênero

Por Gabriela Caputo Atualizado em 21 mar 2022, 16h58 - Publicado em 21 mar 2022, 10h24
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  • Wu Zetian (624-705) foi a única mulher a comandar a China imperial — o que faz com que toda criança chinesa conheça sua figura desde muito cedo. É com base nessa experiência que Xiran Jay Zhao teceu a trama distópica Viúva de Ferro. Recém-lançado no Brasil pela Intrínseca, o livro de ficção científica voltado ao público jovem mistura elementos da história e da mitologia chinesa em uma reimaginação da imperatriz Wu, e estreou em primeiro lugar na lista de best-sellers do The New York Times em setembro de 2021. Xiran, que nasceu na China e é imigrante no Canadá, começou a escrever suas narrativas aos 15 anos, mas foi apenas na pandemia, com uma recente formação em bioquímica e a impossibilidade de ir buscar emprego em decorrência da quarentena, que conseguiu finalmente emplacar sua primeira história.

    “Escrevi três livros antes de Viúva de Ferro, que é o primeiro a apresentar uma protagonista chinesa e minha cultura fortemente”, contou Xiran à VEJA. “Agora, eu escrevo em tempo integral, porque a pandemia me obrigou a ficar em casa em vez de sair e fazer ciência”, explica. Assim como a notável safra de títulos juvenis que se tornaram best-sellers nos últimos tempos, Viúva de Ferro deve grande parte de seu sucesso à comunidade literária presente nas redes sociais como Twitter e TikTok. Xiran assume que tem muito a agradecer a elas. “Todas as editoras americanas me rejeitaram porque elas não achavam que sci-fi venderia. Foi uma editora canadense que apostou em mim, mas não era um contrato com muito dinheiro para marketing. Foi a comunidade que gostou do livro e o boca a boca o levou a esse ponto”, analisa. Na internet, Xiran também tem um canal no YouTube que acumula mais de 400 000 inscritos, no qual fala sobre história e cultura chinesa e suas representações na cultura pop.

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    Xiran Jay Zhao (Arquivo Pessoal/Reprodução)

    A narrativa de Viúva de Ferro se passa em Huaxia — termo usado para representar a China na literatura histórica local —, onde os homens pilotam robôs gigantes que protegem a humanidade dos alienígenas, enquanto as mulheres são pilotos-concubinas. Elas se conectam aos pilotos homens, fornecendo energia vital para as máquinas, mas são poucas que sobrevivem a essa conexão. É nesse cenário que a protagonista Wu Zetian, ao se alistar como piloto, acaba descobrindo ser uma Viúva de Ferro, tipo raro capaz de sugar a energia dos homens e matá-los. Apesar de emprestar o nome para a protagonista, são apenas alguns elementos chaves da história real da imperatriz que servem de pano de fundo para os toques pessoais e altamente criativos de Xiran. Uma outra inspiração foi o anime Darling in the Franxx. em que garoto e garota se juntam para pilotar um grande robô. Decepcionada com os desdobramentos da produção, Xiran começou a imaginar sua própria versão da história — o que resultou no conceito do livro. 

    Indo na linha de outros títulos da literatura para jovens adultos, Viúva de Ferro traz discussões relacionadas a gênero, sexualidade e misoginia. “Tendo vindo da China, eu ainda passo por muitas expectativas ligadas ao gênero”, diz Xiran, que se identifica como uma pessoa não-binária. “Mas mesmo no Ocidente, vejo que há sexismo e muitas micro agressões escondidas, então decidi escrever a história em um mundo explicitamente patriarcal como um aviso do que poderia acontecer”.

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    Xiran ressalta que, depois do reinado da Imperatriz Wu, os direitos das mulheres diminuíram. No livro que dará sequência a Viúva de Ferro, ainda sem título, será revelado justamente que o mundo costumava ser mais igualitário, mas, quando a humanidade perdeu uma batalha, a cultura se tornou mais opressiva. “Não estou dizendo que a cultura chinesa é particularmente mais misógina do que qualquer outra, isso sempre vai ser algo comum em toda cultura — mas é o tipo de opressão de gênero com o qual tenho familiaridade”, ressalta elu — Xiran prefere ser tratade por pronomes neutros. 

    A escolha de elementos da cultura chinesa para dar vida ao seu universo fantástico foi muito natural. Xiran nasceu em uma pequena cidade da China, e só se mudou para o Canadá aos 12 anos. “Sou metade native, metade diáspora. Fui à escola na China e recebi toda a educação sobre a história de lá e tudo mais. Mantive forte a ligação à minha cultura”, diz. Para elu, chegar à carreira dos sonhos só foi possível graças à mudança de sua família. “Meu pai teve de fazer trabalhos manuais, como construção e recolhendo lixo, por anos, até conseguir comprar uma casa. Meus pais fizeram muitos sacrifícios para que eu pudesse ter uma vida melhor. Foi isso que me deu a oportunidade de me tornar escritore”, reflete.

    A vivência em seus primeiros anos como imigrante, porém, não foi nada fácil, e legou profundas marcas. “Quando cheguei no Canadá, teve um ano em que eu era a única criança asiática em uma escola de crianças brancas, e isso prejudicou muito a minha autoestima”, confessa Xiran, que levou anos para lidar com o racismo da experiência. “Foi muito difícil aprender a amar minha cultura novamente, mas através do meu amor pela história e pela mitologia da China, eu descobri que, sim, posso ter orgulho dela.”

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