A articulação política em torno das reformas finalmente avança
O governo acelera negociações para chegar a um acordo em torno de uma proposta — mas as resistências ainda são muitas e o tempo é curto
Nos dias que se seguiram ao pito público do presidente Jair Bolsonaro disparado contra a equipe econômica, na terça-feira 15, os celulares em Brasília deixaram de ser atendidos e as mensagens, respondidas. Depois da bronca presidencial por causa da proposta de desindexar o salário mínimo, os membros do Ministério da Economia se fecharam em silêncio e seguiram à risca a “proibição” de não levar a público propostas ainda em estudo. Foi quando entraram em cena os articuladores políticos. O resultado da movimentação dos profissionais em negociação passou a surtir efeito e até as arestas entre o ministro da Economia, Paulo Guedes, e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), começaram a ser aparadas na busca por um território comum. Depois de uma semana que poderia ser descrita como de choro e de ranger de dentes, surgiram, enfim, os desenhos de um consenso.
Há interesses de ambos os lados. Guedes corria o risco de ver a sua agenda congelada. Maia tem a pretensão de passar à história como o congressista que liderou a aprovação não só da reforma da Previdência, mas também da tributária e até do Pacto Federativo. Para essa aproximação avançar, ainda seria preciso um aval mais claro do presidente a um dos pontos mais caros a Guedes entre as propostas do ministério. Com o lápis na mão, Guedes, finalmente, convenceu o presidente Jair Bolsonaro de que o imposto de transações digitais, que cheira à antiga e vilipendiada CPMF, é a forma para abrir espaço para desonerar a folha de pagamento das empresas e fomentar as contratações, além de possibilitar o financiamento do programa de renda básica e mais o aumento das isenções de impostos às igrejas, desejos do presidente. Bolsonaro, enfim, gostou.
A agenda exaustiva de reuniões, coordenadas pelo ministro Guedes e pelo chefe da Casa Civil, Walter Braga Netto, durante a última semana, serviu para organizar um cronograma e um plano de ação para, finalmente, viabilizar a reforma tributária e a PEC do Pacto Federativo. Foi acordado que as duas precisam caminhar juntas obrigatoriamente: parte do plano do governo para os tributos estará contida na PEC do Pacto. O imposto digital, que deve se chamar Digitax, e a desoneração de setores produtivos e das instituições religiosas, por exemplo, estão na segunda proposta de emenda à Constituição. Parece estranho — e é. Mas foi a forma encontrada para acelerar a tramitação pelas duas Casas. Enquanto a tributária é aprovada na Câmara, a outra precisará passar no Senado.
A missão mais árdua será convencer o Congresso Nacional, e o governo sabe disso. A janela de tempo é curta. Na Câmara e no Senado, parlamentares acreditam que as eleições municipais, em novembro, devem atrapalhar de maneira incontornável a agenda econômica de Guedes. Depois, será possível acelerar as discussões ainda neste ano, mas Maia e o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), terminam seus mandatos em fevereiro de 2021. Esse meio-tempo será usado para derreter resistências. Para isso funcionar, as articulações começarão logo. Segundo o líder do governo no Congresso, o senador Eduardo Gomes (MDB-TO), as lideranças partidárias estarão focadas em analisar os dois textos até a quarta-feira 30. Depois, sentarão para negociar as diferenças e aprovar o regime de urgência das matérias.
Contudo não há ainda um acordo (e não será simples costurá-lo). Somente na reforma tributária, há três textos concorrendo, além das propostas externas, como a da organização privada Simplifica Já, apoiada pelo ex-secretário da Receita Everardo Maciel. “Irá para o Plenário a que tiver um mínimo de apoio”, afirma Gomes. Ou seja, a reforma, que precisa de três quintos dos deputados e dos senadores para ser aprovada, tem grande probabilidade de naufragar. Ao menos oito ministros do governo estão incumbidos de trabalhar ativamente pela aprovação. Um deles é Fábio Faria, ministro das Comunicações e com boa interlocução no Centrão. Ele será responsável por levar para conversar com Guedes representantes de todos os públicos interessados, para entenderem as mudanças propostas. No gabinete de Faria, que foi integrado ao time de ministros de Bolsonaro para apaziguar os ânimos entre o Executivo e o Legislativo, o entra e sai é maior até mesmo do que no de Luiz Eduardo Ramos, ministro-chefe da Secretaria de Governo e articulador oficial.
Apesar da ofensiva de parte de alguns ministérios mais perdulários, o objetivo, segundo Eduardo Gomes, é impedir o furo no teto de gastos em 2021 e garantir condições mínimas para a retomada da economia. Depois de ser bombardeado com apresentações, planilhas e explicações, Bolsonaro parece ter entendido que terá problemas graves caso não enfrente a questão fiscal que se anuncia. Afinal, o Brasil sairá da crise do novo coronavírus amargando uma dívida de quase 100% do PIB. Apesar de conceder a Guedes a autorização para voltar a discutir a CPMF, o presidente rejeitou a alíquota de 0,4% desejada pelo ministro. Aceitará, no máximo, 0,2%, como forma de desonerar totalmente a contratação de postos de trabalho de um salário mínimo. Já empregos com vencimentos maiores terão escalonamento nas taxas. Mas tanto Maia como Alcolumbre seguem resistentes ao imposto. Uma das alternativas articuladas por Guedes envolve acoplar a nova tarifa à PEC 45, de autoria do economista Bernard Appy, que conta com maior apreço de Maia — para isso, o ministro confia na avidez do presidente da Câmara em ganhar projeção como fiador da proposta. Mas o jogo está longe de estar ganho. “Guedes está aficionado da ideia de desoneração da folha, mas teria de buscar alternativas para manter o nível de arrecadação. A CPMF é um imposto ineficiente e regressivo, que não desonera a cadeia”, critica Ernesto Lozardo, ex-presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. “O ministro vai para o tudo ou nada, e isso não é bom.”
Enquanto Guedes trava o corpo a corpo com os congressistas, o presidente do partido de Maia e prefeito de Salvador, Antônio Carlos Magalhães Neto (DEM-BA), garante que o DEM lutará contra o tributo sobre movimentações financeiras. “Se depender da gente, não passa”, vaticina. Apesar da declaração enfática, se até a resistência de Bolsonaro já está ficando para trás, alguns afagos ao Congresso podem ajudar na mágica de construir um consenso.
Publicado em VEJA de 30 de setembro de 2020, edição nº 2706